Com toda a sinceridade


    Com toda a sinceridade lhe digo que… Fiquei logo desconfiado. Continuei a ouvir, embora. E ela prosseguiu construindo frases, repetindo ideias, esgrimindo e rebatendo argumentos que eu não lhe opusera, nem lhe oporia. Com toda a sinceridade, reiterou, e abria e fechava a boca de lábios demasiado pintados como uma grotesca careta quase indecente. Parecia exibir o sexo húmido no lugar da boca, que traria ela no lugar do sexo, ocorreu-me vagamente. Nada a não ser ele, respondi de novo vagamente. Inspeccionava-a sem grande interesse, passava dos seus lábios para os seus olhos a negro contornados, excessivos também, dos seus olhos para o seu cabelo aparentemente despenteado, cuidadosamente solto, com toda a sinceridade uma vez mais. Despediu-se sorrindo-me com uma timidez um tanto ousada, promissora julgaria ela, nem um pouco dir-lhe-ia eu, estendeu-me a mão, apertei-lha molemente, e permaneci sentado meditando sobre a necessidade de as pessoas assegurarem a veracidade das suas palavras, perante si próprias sobretudo, quando isso deveria, deveria?, estar pressuposto.

E, no entanto, eu próprio, vagamente, tão vagamente quanto possível, não me eximia eu a qualquer compromisso, não adiava eu as acções que me obrigariam a tomar partido, a discutir, a recusar ou a aquiescer. Pelo menos a contemporizar. Mesmo o meu rosto, não o tornara eu no decorrer dos anos o mais inexpressivo possível, como uma máscara que nunca rugas algumas descobririam nem revelariam, ora iluminando-o, ora ensombreando-o, as rugas, em qualquer caso afirmando que sim, sim, sim, algo houvera passado por lá, parado breve, e deixado a sua cicatriz, como pegadas num areal ou num caminho enlameado. Não, não, não, o rosto ileso, indemne, e o corpo, o corpo carcomido pelo tempo e oculto por sob os agasalhos, tinha acontecido sem dúvida uma hora, ou várias, em que eu o haveria desnudado de boa vontade, de tenso desejo, tal como teria oferecido este rosto que outrora clamara meu a todas as intempéries, mas fora há tanto tantos anos que a recordação se esbatera até transformar-se em nada. E, portanto, ela, que era linda, de sexo à flor do rosto, olhos, lábios, malares, maxilares, e quem sabe se o rosto no lugar do sexo num amplo sorriso franco, e se me oferecera com toda a sinceridade, deixara-a eu afastar-se sem mágoa nenhuma, sem gesto algum. E o meu sexo permanecera também ele inerte, impávido, ausente em parte incerta. Pois bem, restava-me concluir então que me encontrava morto já, embora respirasse, caminhasse, trocasse palavras vãs. O mundo era-me cemitério e a morte nada me surpreenderia e amedrontaria. Perdera oportunidades umas atrás das outras e sobrava essa última que eu com certeza desta vez não lograria desperdiçar.

Eis assim analisada friamente, ou mais propriamente sintetizada por intermédio de generalidades porventura cruéis e abusivas, mas certeiras, esta minha tão pouca minha, tão pouco própria, tão pouco vida. Vaga vida vezes nada.

                                                                   
Bénédicte Houart     

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