Residencial alegria
Acordo estremunhado
com a sirene da ambulância. Hei-de numa igual viajar um dia. Para tão longe
daqui. De noite choveu torrencialmente. Os carros travam e deslizam. A
primavera tarda. As tílias já floresceram. Aspiro o seu odor. As pombas sujaram
o plástico. É costume. Cada qual tem de tratar da sua vida, os outros que se
lixem, desde que não atrapalhem. Enfio o braço debaixo do banco, agarro na
embalagem de cartão. Bebo um ou dois tragos para despertar. É o meu cafezinho
da manhã. A dona margarida já foi à sua vida. É madrugadora, sempre foi, a
gente não muda por tão pouco. Deixou a tralha naquele banco ali ao fundo, junto
ao repuxo d’água. A tralha, não, os trapos. Os seus trapinhos. É onde ela gosta
de adormecer, diz que acorda bem disposta embalada pelo ruído monótono da água
que sobe e desce e desce e sobe. Onde a gente lava a cara é o bebedouro das
pombas, dos pardais, dos melros. Dos corvos. À noite, não, a câmara desliga-o, é
para poupar energia, de resto que lhes importa a eles se há gente que gosta de
adormecer assim. Que não tem como adormecer senão assim. Um cão vem farejar as
latas semi-vazias. Enxoto-o com palavrões. Gosto de animais, mas cada qual que
se desenrasque. É o meu almoço, pá, chega para lá. Enfio a mão no bolso das calças.
Tiro uma beata. Acendo-a. É o meu cigarrinho da manhã. Outra beata. À sexta,
estou bem desperto. Se não tenho medo das doenças, está a gozar comigo, ou quê?
Sabe-se lá se… Pois, tem razão, sabe-se lá, sabemos lá se. O sol apareceu entre
duas nuvens negras. É frio. Gelado de frio. A primavera tarda. A dona margarida
disse-me ontem que este ano não vai haver primavera. O verão também tarda. A
chuva comove-me, talvez porque não a ouço caindo dentro de casa bem resguardado.
Tenho os ossos enregelados. Dói-me o corpo todo, deve ser do reumático. Mesmo
assim comove-me. Doer recorda-me. Como vim parar aqui. Não há muito para
contar. Um certo dia igual aos outros dei por mim a escolher um destes bancos
de trouxa às costas. Como um caracol. Caracol, caracol, põe os corninhos ao
sol. O corpo cravejado de cornos. Juntei uns cartões, uns pedaços de linóleo,
encontrei um colchão velho junto a um caixote do lixo, e armei a tenda.
Chamo-lhe a minha casa de campo. Chamem-lhe o que quiserem. Eu chamo-lhe a
minha casa de campo. As estrelas são feias vistas daqui. As tílias cheiram a
lixo. A água do lago é porca. A dona margarida não tem os dentes da frente,
quando ri, ora dá vontade de rir com ela, ora mete pena. Tudo nela parece postiço
menos a alma. Que eu sou cristão. Pessoas postiças dos pés à cabeça topo-as eu
todos os dias. Há quem até a alma tenha postiça. Quando lá estivermos todos é
que se saldam as contas, aqui é só a fingir. Tremem-lhe as mãos, à margarida, é
da pinga. Se começa a conversar ninguém a cala. Até gosto, ouvindo-a vago distraído
tudo o que dói sinto-o menos ou quase nada. Diz que era cabeleireira, cá por
mim era barbeira. Sempre que se fala de alguém importante diz conheço-o bem, aos
cantos todos da casa, frequentava o meu salão, era cliente regular. Traz o
cabelo cortado rente por causa dos piolhos. O meu, não, é encaracolado,
prendo-o com um elástico. Os piolhos quero lá saber, sugam-me o sangue, devem
cair de bêbedos. No outro dia ouvi uma senhora bem posta na televisão a afirmar
peremptoriamente que o direito de circulação é um direito humano fundamental. Fartei-me
de rir. Venha falar comigo que eu explico-lhe. Sabe como é a gente estar
exilado na sua própria cidade? Pois, estou a exercer o meu direito fundamental.
Antigamente só circulava dentro de casa e de casa para o trabalho. A minha mão
também circulava bastante, da cara da minha mulher para a cara de cada um dos
meus filhos, era um ver se te avias. Arrependi-me já estava na rua. Que as ruas
têm olhos, ouvidos, línguas, dentaduras. Agora circulo pela cidade toda, lisboa
tem muito que se lhe diga, que se lhe veja, devia era candidatar-me a guia turístico
para moradores da rua. Da vida desavindos. O ideal era pôr casa junto a um
miradouro, mas a polícia não deixa por causa dos estrangeiros. A desgraça
quer-se entaipada. Eu, eu podia ter sido tudo o que quisesse, aliás, estou aqui
só de passagem, sou temporário. Um ser temporário. A vida é uma doença crónica
cuja cura é a morte. Isso é o vinho a filosofar. Olhe que não, olhe que não.
Logo à noite os moços da associação trazem-me a sopa e uma sandes. O vinho
tira-me o apetite. A vida matou-me a fome. Foi para eles que escrevi esta
prosa. Gravei-a na minha memória. Acho que nunca falei tanto. Acho que nunca
disse nada. Agora vou calar-me. Aquela rapariga da pensão veio sentar-se no
banco ao lado. Olha para mim sem espanto nem comiseração, abre um caderno,
escreve. Ia pedir-lhe uma moeda, depois contive-me. Há algo de inviolável no
seu olhar, de digno na sua atitude, de belo nas suas mãos movendo-se devagar,
talvez esteja a desenhar. Ia acrescentar para rematar que o meu dia a dia é
igual ao meu mês a mês e ao meu ano a ano desde há sete anos. Mas não. Hoje
aconteceu-me esta rapariga. Podia ser minha filha. A minha família de verdade
corri com ela do meu coração faz muito tempo. O arrependimento não ressuscita
os mortos. Mas rói os vivos. A rapariga não é minha filha, mas podia ser. Foi
minha vizinha durante três dias. Ela dentro e fora e eu fora e fora. Quando lá
estivermos todos e ela aparecer finalmente, há-de interceder por mim. Ela sabe,
eu sei.
Nunca me viu de
verdade porque eu estava encafuado debaixo do plástico e dos cartões,
espreitei-a eu da janela. É, a minha casa de campo tem janelas, terraços, horta,
canteiros, pomares. E os seus olhos percebi-o logo são daqueles raros que
atravessam paredes e rumam sem hesitar para o coração das coisas. Rosa dos
ventos. Portanto, há-de interceder por mim. Ela não sabe que sabe, eu sei que
ela sabe. Tanto faz. Dei-lhe um nome só meu. Chamá-la-ei. Voltar-se-á.
Bénédicte Houart
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