A história
Cindy Sherman (1971) |
Ele não saía de trás da janela. Ele era eu. A rapariga devia estar a chegar. A rapariga… Por vezes, parecia uma menina, por vezes, uma mulher. Outras vezes… Que sei eu? Deixava-me as calças apertadas, até molhadas. Quando ouvia as suas gargalhadas ou os seus suspiros, ou mesmo frases banais que ela trocava com os outros clientes, meus vizinhos com os quais eu nunca falara, hoje está mais fresquinho do que ontem, o sol não aquece, choveu de noite, por mim, que chova tudo, mas de noite, a chuva entristece-me, e parecia alegre a falar da sua tristeza, até sorria, sim, até sorria, deus meu, e eu rezava ao sol para que aparecesse, que heresia… Quando a ouvia, fugia da janela e ia para o quarto aliviar-me. E quando ela não vinha, pior ainda. Recordava-lhe as pernas compridas, aquele ar de gazela amedrontada, de leoa esfomeada, de criança de dedo ou caneta na boca, chupando-os pensativa, concentrada nalguma coisa que só ela via ou pressentia. Concentrasse-se ela assim no meu corpo e eu estaria bem tramado. Porque iria querer mais. Eu. E mais. E mais. E ela tinha cara, que digo, cara, como se se lesse nos seus jeitos e trejeitos, nas suas expressões tão variáveis quanto imprevisíveis, nos seus gestos ora bruscos ora pausados, palavras subitamente interrompidas por risadas algo despropositadas, mas contagiosas, quanto contagiosas, tão contrastantes com a sua fragilidade, pelo menos delicadeza. Que digo eu? Ela tinha cara de quem não perde muito tempo com uma só coisa, ou procura, e descobre, em cada uma, outra à qual se dedicar logo de seguida com o mesmo entusiasmo, com o mesmo fervor. E assim sucessivamente. E, portanto, eu estaria desde logo condenado a ser trocado, traído, substituído. Era sem dúvida uma capitu encartada. Nunca me seria fiel. Era-se fiel a si própria desde criança, dir-se-ia. Se ao menos eu a tivesse conhecido criança… Devia ser adorável. Dizia-se que tinha sofrido, sofreria ainda, de um síndrome, de uma variante, uma falta de, uma carência, algo a menos ou a mais. A mim parecia-me perfeita, mais do que perfeita. Demasiado perfeita para mim. A mim, faltava-me ela. A ela, talvez tudo, talvez nada, mas nunca apenas alguém ou alguma coisa. De entre todos os outros, quantos poderiam gabar-se disso? Havia defeito, certamente, mas a tal ponto que a própria perfeição era superada. Quero dizer, a própria imperfeição reinava doravante incontestável.
Pois bem, abordei-a um dia sob um pretexto qualquer, bastante pateta, enfim, foi o que me ocorreu, planeara outro, entretanto claro que me esqueceu, ocorreu-me outro parecido, mas que surtiu o efeito pretendido. Ela sorriu-me como quem diz, meu aldrabão, já te topei, queres jogar comigo, alinho até ver, espero que disponhas de vários trunfos, porque eu não preciso disso. Trocámos algumas frases, e eu a pensar, está a correr bem, nem quero acreditar, está a correr melhor do que eu antecipara, graças a deus, está bem encaminhado, para onde já não me importa, seja o que ele quiser, ele ou ela, tanto faz, o pior já passou. No entanto, eis senão quando ela declarou, num tom que não admitia réplica: vou contar-lhe uma história. E eu, ah sim, balbuciando, ah sim, pensando, valha-me deus, mas nem vê-lo, valessem-me então os santinhos, todos aqueles de que me lembrei, tudo num piscar de olhos, e, confesso-o aqui, até invoquei o próprio diabo, eu, um católico assumido e praticante. Pois quanto à minha razão de homem maduro, há muito me abandonara. Ah sim, ah sim, diga então, ou conte, conte então, ou diga. E ela começou, com os olhos pousados nos meus como se percorressem palmo a palmo o meu corpo todo. Como se os seus olhos fossem providos de mãos, de narinas, de… Sim, até de papilas gustativas. Como se ela, falando embora, desarticulasse astuciosamente o esqueleto da língua portuguesa até reduzi-lo a pó.
Eis então narrada o mais fielmente possível a história que aquela marotinha me contou. Não era propriamente uma história de pôr os cabelos em pé, isso posso desde logo garanti-lo. Se é que me faço entender. E, quanto ao mais, pois bem, quanto ao mais, avaliai-o vós.
Bénédicte Houart
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