Versos que lembram (7) Walt Whitman
Ainda antes de ler Walt Whitman, tinha lido a conhecida saudação ao poeta, de Álvaro de Campos. Retive desse poema algumas imagens estrondosas: a da ‘concubina fogosa do universo disperso’, por exemplo. A da ‘fraternidade feroz e terna com tudo’, por exemplo. A do ‘Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor’, por exemplo. E tornou-se-me inadiável ler o poeta que inspirava a outro poeta tão arrebatadas apóstrofes, tão entranhada fraternidade.
E li. Não a totalidade das Leaves of Grass, que nunca tive à mão, mas uma longa série de poemas seleccionados por Van Nostrand e Watts, numa antologia de poesia norte-americana chamada The Conscious Voice.
Não o li sempre com o mesmo prazer. Às vezes, confesso que aqueles extensos catálogos em que se compraz a cada passo, como que com ânsia de nada deixar por dizer, se me tornavam enfadonhos. Mas havia naquela verborreia, quase cacofonia, retalhos que me compensavam e comoviam.
Os versos que mais me lembram são uma evocação da infância e da natureza (não são só isso, mas também são isso). Chama-se o poema “Out of the cradle endlessly rocking”. No garoto que sai furtivamente de casa, durante a noite, para os areais de Paumanock, gosto de me rever — sem nunca me ter atrevido a aventuras daquelas. E na curiosidade do mesmo garoto, a espreitar o quotidiano de um casal de mocking-birds (não cometerei a leviandade de traduzir por ‘cotovias’, como alguém fez com o romance de Harper Lee, To Kill a Mocking-bird), revejo a minha própria curiosidade, essa sim, realmente exercida nos campos de Trás-os-Montes. Podia ser eu o rapazinho destes versos que tantas vezes me lembram e comovem:
[…] Once Paumanock,
When the lilac-scent was in the air and Fifth-month grass was growing,
Up this seashore in some briers,
Two feather’d guests from Alabama, two together,
And their nest, and four light green eggs spotted with brown,
And every day the he-bird to and fro near at hand,
And every day the she-bird crouch’d on her nest, silent, with bright eyes,
And every day I, a curious boy, never too close, never disturbing them,
Cautiously peering, absorbing, translating. […]
Ou seja, mais ou menos:
[…] Naquele tempo em Paumanock,
Quando andava no ar o perfume do lilás e crescia a erva do quinto mês,
Ao longo da praia, numa roseira brava,
Dois visitantes alados do Alabama, os dois unidos,
E o seu ninho, e quatro ovos verde-claro pintalgados de castanho,
E todos os dias ele de cá para lá, sempre por perto,
E todos os dias ela aninhada, silenciosa, de olhos brilhantes,
E todos os dias eu, rapazinho curioso, nunca perto de mais, sem os perturbar,
Espreitando discretamente, absorvendo, traduzindo. […]
A.M. Pires Cabral
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