Vila viçosa
© Sebastiaan Bremer |
Pois bem, há esta rapariga que de quando em quando levanta os olhos dos livros que espalha pela mesa, a mesma mesa cada dia, os mesmos livros, será que os lê sequer ou que os traz para fazer de conta que sim. Olha-me como se me visse pela primeira vez, e, no entanto, lembro-me dela do ano passado, do ano anterior, e espero-a já para o próximo ano, não sei embora que não regressará. Sinto que me acha bonito. Bonito, não, belo. E louco. Não, não julga, disseram-lho, ela ouviu-o, e olha agora como se pretendesse deslindar um mistério qualquer. Não há mistério nenhum, moça. Há isto: saio de casa, seguiste-me um dia e anotaste no teu caderno o nome da rua, o número da porta, para um poema disseste tu, tê-lo-ás escrito?, saio de casa e repiso os passos do dia anterior, do dia de amanhã, de todos os seguintes, não penso em nada, estou ausente, apenas isso, ausente. Sento-me nuns degraus junto a uma oliveira e derramo o corpo ao sol, na mão direita um cigarro que se vai consumindo porque até de fumar por vezes me esqueço. Sou filho desta vila, não, filho não, enteado, todas as vilas do interior têm o seu, nas cidades são tantos que se confundem com os outros, os sãos, impossível dizer qual é a maioria. Dizem também que me perdi, perdeu-se, perdido, o álcool, coitado, a vida, o raio, mas não é verdade, ou só parcialmente, estou presente na minha ausência, esbarro em mim constantemente, e sei que quase ninguém pode compreender isso. Talvez a rapariga, sim, tentar, pelo menos, percebo que gostaria de tentar compreender, mas eu já nada tenho para dizer, abro a boca apenas para inalar o fumo, para o expirar. Trauteio melodias antigas em voz baixa, tão grave, tão cava, que só seres menores me ouvem e por vezes me acompanham num coro desafinado e profundo. Sento-me no framar, tomo um café, ouço os comentários, não retenho nada, deixo passar as frases, deixo-as deambular, tal como eu, passado passando, passando passado, embora o mesmo percurso sempre. Embora o futuro nenhum. As badaladas do sino da igreja matriz, ou será da sé?, conheço-as desde criança, ainda não tinha enlouquecido, estava morto por crescer, e agora, crescido, belo aprecia ela, estou morto por morrer, por penetrar de vez nessa escuridão que ensombrece a minha figura projectada nas paredes brancas caiadas da vila. Morto por morrer, mas incapaz do gesto derradeiro porque ainda exige propósito a mais. E estas mãos, belas observa ela, compridas morenas queimadas, estas mãos emudeceram ainda antes que a voz.
Hoje ocorreu-me cumprimentá-la. Como a minha voz se precipitou definitivamente no silêncio, sentei-me e levantei-me duas vezes seguidas, não sei se ela compreendeu, talvez, porque houve um esboço de sorriso no seu rosto, se me era dirigido não posso afirmar, reparei como ela sorri muitas vezes sem razão aparente. Pelas minhas mãos passou então um frémito de alegria, dirão de loucura, eu digo de alegria, há quanto quanto tempo, e quase derrubava a chávena de café, quase. Nervos nas mãos, há quanto quanto tempo. Como vês, miúda, se fosses minha chamava-te assim, miúda muito graúda, como intuías certeiramente, nada de particular para contar, se calhar foi a partir daí, quando nada mais para contar, não por falta de acontecimentos, banais, claro, mas não o são quase todos, mas por falta de vontade, por total ausência de premeditação, e depois as próprias palavras rarefizeram-se, já nem peço o café nem o tabaco, basta eu aparecer que eles aparecem também.
Foi há dez anos. Pelas badaladas do sino. Não sabes que entretanto morri, dizem eles, que na realidade continuo por aqui deambulando, sabem-no as pedras da calçada portuguesa que conhecem o peso exacto do meu corpo. Não sei que entretanto sobreviveste a um gesto pouco premeditado e quase derradeiro, que por pouco nos íamos encontrando do lado de lá da vida. E então talvez nos reconhecêssemos, talvez a minha voz me tivesse sido devolvida, restituído o meu nome próprio, caminharia na tua direcção e contar-te-ia tudo desde o princípio, quando eu era criança, filho querido desta vila, morto por crescer, quando andava a cavalo pela planície generosa, galopando por entre marmoreiras e sobreiros, até esse dia em que falhei um obstáculo e caí do cavalo e fiquei estendido na terra encarnada, para sempre contemplando a paisagem, erguendo-me depois para fazer de conta que sim, endireitada a coluna ainda que eu doravante debruçado sobre nada, acocorado no chão do meu corpo, ora tremendo de frio ora fervendo de compaixão, tal como tu, certa noite de um dia sofrido, mergulhada num lago de sangue, e um sorriso aberto acendendo o teu corpo derramado nos mosaicos tresmalhados da tua vida quebrada. Tão bela serias então, com o teu blusão e as tuas sapatilhas adidas cinzento prateado, tão bela ter-te-ia amado.
Bénédicte Houart
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