uma canção belga para bénédicte sobrevoando o céu de lisboa: 2 variações em cor



primeira variação
nesta imagem, vejo bénédicte em pé de frente para um microfone inclinado posto sobre um tripé: braços pensos, olhos fechados, lábios em formato de Ó, e as mechas alaranjadas, esvoaçadas, até a altura do ombro. bénédicte não veste seus sapatos vermelhos e me pergunto se bénédicte já terá galgado as montanhas usando os sapatos de vinte anos: imagino-os em movimento e eles são pontos vermelhos luzindo sobre a pedra se vistos por alguém que passa embaixo neste momento, pontos que se vão reduzindo lentamente, como um zoom que se distancia: o próprio tamanho diminui enquanto o mundo aumenta, ou o mundo vira uma miniatura quando se cresce, e você lembra de alice in wonderland, crescer crescer crescer até tocar no teto comprimir comprimir comprimir: trata-se de mudar o ponto de vista, andar na corda da vida tentando se desfazer e refazer. trafegar é preciso.
olho de novo e, aqui, bénédicte está de olhos fechados. em vez dos sapatos vermelhos, ela traz no braço esquerdo uma pulseira de contas vermelhas: gotas de sangue do poeta, você me diz, não para ser dramática, mas irônica, para fazer rir e jorrar cor nas penas do pavão, você me diz que ela bebeu sangue demais e ficou grogue, perdeu a fala, mas aqui as pequenas bolotas vermelhas da sua pulseira são como gotas de água salpicando o avental da imagem: é uma mulher que descasca a própria vida e busca fazer ecoar o dia seguinte, o verso o reverso e o inverso de cada coisa.
por fim, no centro desta mesma imagem, vejo a meia calça lilás que veste bénédicte: longas pernas lilases na vertical da foto, tão prosaico, tão colorido como os m&ms comprados com os direitos de autor. ou como o esmalte azul turquesa made in china, que será usado na hora da morte: também as meias podem ser trocadas para adiar os desapontamentos e, assim, as palavras ficam, uma vez mais, aquém e além. não chegam a equivaler, a definir, a encher a boca; mas permanecem nesta contínua variação: abrir os olhos para ver o mundo. em seguida fechá-los para ver dentro e, então, construir um outro mundo.

segunda variação
na segunda imagem, bénédicte me diz: gosto de ler poesia entre as nuvens, e este verso me descomprime os ouvidos como rebuçados no momento em que meu avião cruza o céu de lisboa e em que vejo no monitor o desenho da aeronave em movimento sobre o mapa, percorrendo uma linha intermitente: seu rastro de lataria à vol d’oiseau toca os acordes desta canção ao entrar pela ponta da europa a caminho de bruxelas.
percorrendo esta melodia, penso que bénédicte nasceu na bélgica, que bénédicte é uma poeta portuguesa e que há dois dias tento chegar ao plat pays. chamas-te bénedicte e eu me chamo marília e se você olhar para o céu poderá ver nesse instante que meu avião acaba de passar a algumas centenas de metros da sua casa, da cotovia, do andré jorge e dos comboios que tornam sua língua sua língua: e agora penso que um bonde em lisboa é um bonde em lisboa, que duplicado um bonde não é mais um bonde, pode ser um comboio, ou uma variação, ou uma viagem de coimbra a lisboa, com esperança, ou de lisboa a coimbra, com desalento, ou vice-versa, pode ser a vida perpetuamente desequilibrada nesse mundo desengonçado, pode ser uma maneira de produzir o próprio mundo: uma imensa pastelaria, você me diz com álvaro, com aviões cruzando o céu lisboeta a caminho da bélgica. basta parar e ouvir, desfocar o mundo e então ver, com a escuta aberta, essas palavras que mudam de linha, caminham na página, deslocando chapéus no vento, seguindo-se umas às outras e produzindo raparigas no sofá, caracóis, um mar de lágrimas, melros que escondem corvos, formas que existem agora entre as nuvens, entre uma e outra refeição.
deste voo recolho suas palavras como carícias e descubro um mundo que nunca vi: um mundo que, como o coração do seu relojoeiro, não precisa de pilha nova, este o mundo da sua poesia, e vou no próprio avião entornando a paisagem, passando com ela, parando com ela, com bénédicte.


Texto escrito para a ocasião do lançamento de Vida-Variações II de Bénédicte Houart que ocorreu em Lisboa no dia 28 de Novembro 2011.

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