Diário de Berlim: O fotógrafo


Há cerca de dois meses, me ligou um sujeito querendo me fotografar. Queria saber quando podíamos marcar uma sessão na minha casa. Eu não sabia quem ele era, muito menos como tinha conseguido meu telefone, embora não seja difícil. Não sou um homem dado a formalidades, mas fiquei constrangido – e um pouco irritado – com a sem-cerimônia do fotógrafo. “Desculpe, mas eu nem sei quem você é”, tive que dizer a certa altura, para que ele entendesse. E foi quando, com alguma presunção, ele pediu o meu e-mail, para mandar o endereço do seu site. Ele ia me fazer entender com quem eu estava falando. 

Me esforcei para não ser antipático ou deselegante, mas a verdade é que não tenho o menor interesse em ser fotografado (não ganho nada com isso, além de não fazer o menor sentido prático se não for para ilustrar algum artigo ou para a divulgação de um livro, e não era o caso). Acho que tenho o direito de não querer ser fotografado, mas fiquei sem graça de dizer isso já de saída e depois descobrir que o fotógrafo tinha sido mandado pela instituição que financia a minha permanência em Berlim, por exemplo. Perguntei se ele tinha falado com a instituição. Claro, ele disse. Assim que desliguei, mandei um e-mail para os responsáveis pela bolsa e eles responderam que não estavam sabendo de nada. O fotógrafo não tinha nada que ver com eles. 

A mensagem com o endereço do site chegou logo depois. O portfólio do fotógrafo estava recheado de retratos de escritores célebres, entre um ou outro diretor de cinema. A maioria dos retratados era moeda corrente no mercado internacional. Alguns tinham vivido em Berlim com a mesma bolsa que eu. Estava explicado como ele arrumou o meu número. Os telefones das casas dos bolsistas permanecem os mesmos. Eu estava lidando com um profissional. 

Resolvi ser honesto, medindo as palavras, é claro, para não cometer nenhuma gafe. Com o advento do e-mail, ninguém mais pode terminar uma carta ou uma mensagem com um simples “abraço”, sem correr o risco de parecer irônico ou sarcástico. Tem que ser sempre “um grande abraço” ou “um abração”, para não deixar dúvidas. O e-mail é um dos meios de comunicação mais hiperbólicos e traiçoeiros – e um dos menos sutis. Qualquer ambivalência pode criar mal-entendidos e soar agressiva, de modo que tomei todas as precauções para não ferir os brios do fotógrafo, explicando que não me sentia à vontade sendo fotografado e que, portanto, se não havia um motivo prático e imediato para a foto, preferia declinar o convite. A resposta foi imediata: “Não me parece que você esteja pouco à vontade nas fotos que vi na internet”. 

Respirei fundo para não rebater (é o que todo mundo devia fazer antes de responder e-mails). Mas fiquei contente de ter recusado o pedido. Não podia dar certo. O fotógrafo estava inconformado. Não entendia como alguém podia esnobar aquele rol de celebridades. 

Melhor assim. Semanas depois, minha editora alemã me escreveu, de Munique, propondo uma sessão de fotos para uma futura divulgação na feira de Frankfurt, quando o Brasil for o país convidado, em 2013. É claro, eu respondi. Não podia imaginar que a ideia tivesse partido do mesmo fotógrafo. Não era possível que o orgulho ferido fosse capaz de anular a tal ponto qualquer resquício de amor-próprio. Ainda mais num adulto. 

Dias depois e alguns minutos antes da minha leitura no festival de literatura de Berlim, um homem com uma câmera pendurada no pescoço se aproximou e, depois de confirmar o meu nome, disse sarcástico (ou talvez – e foi disso que comecei a desconfiar – não fosse sarcasmo nenhum e desde o começo eu apenas estivesse lidando com um imbecil): “Me parece que você mudou de ideia!”. 

Constrangido, como se tivesse sido pego em flagrante roubando fruta na quitanda da esquina, tentei explicar, de novo, a razão por ter aceitado a proposta da editora. Tentei ser gentil. E já estava pronto para me deixar fotografar, repetindo que em geral não me sinto à vontade e que só aceito ser fotografado por motivos profissionais, quando ele me interrompeu, impaciente e mordaz: “Lamento dizer, mas você escolheu a profissão errada”. Foi o suficiente. Num instante, desapareceu todo constrangimento e o ódio me subiu à cabeça. Será que eu ia ter que explicar ao fotógrafo que literatura não é documento, como dizia uma poeta brasileira? Que literatura não é ser fotografado? Ou será que era eu que estava (estou), de fato, na profissão errada? Ele se espantou com a fúria. E se retraiu. Ainda queria fazer os retratos. Sei lá por quê! Por teimosia. Por um orgulho patológico. Ou por burrice. Porque já não era possível. “Qual é o problema? Você não viu meu portfólio?”, ele perguntava, choroso. “O problema não é você. O problema sou eu!”, eu repetia. Mas ele não era capaz de entender. Desde então, continua me mandando e-mails, para marcarmos uma hora. E é claro que eu já não respondo. Porque escolhi a profissão errada.

Bernardo Carvalho
O texto foi originalmente publicado no Blog do Instituto Moreira Salles

Na próxima sexta-feira, dia 14 de Outubro 2011, pelas 9h30, Bernardo Carvalho vai apresentar o seu paper  "A Morte da Obra" no Colóquio "Público e privado, o deslizar de uma fronteira", organizado pelo Centro de Estudos Comparatistas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
                                       
                                              14/11/2011 » 9h30 » FLUL » Anfiteatro III


Para mais informações, visite a página do Centro dos Estudos Comparatistas

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