Pessoa e os fantasmas da totalidade


Já Hans Blumenberg analisou amplamente a história universal do livro enquanto metáfora da totalidade, da experiência ou do mundo. Mas não é preciso ir tão longe. O livro, ainda que não directamente associado a uma totalidade metafísica, é visto ainda hoje e após as mais diversas revoluções técnicas, como o suporte capaz de conter em si uma obra completa e arquitectonicamente perfeita, expressão adequada e transparente dos pensamentos do seu autor. Realmente curioso é quando esta crença passa do autor para o editor. Mais ainda quando os dois são o mesmo. É o caso de Pessoa. Colocando-se não só na posição de autor mas também de editor das suas obras, atribui estas funções ao seu próprio nome ou a nomes ficcionais para tal designados. Os seus inúmeros planos e projectos editoriais apresentam possibilidades alternativas de edição dos livros que, com uma única excepção, nunca publicou. O fosso que constatou entre o desenho de uma arquitectura da obra e a sua concretização será uma das explicações para este facto. Mas uma outra é igualmente evidente. Refiro-me à encenação do logro que Pessoa coloca em jogo, projectando no futuro uma obra que nunca estaria nem poderia estar concretizada, cuja edição foi deliberadamente legada à posteridade como garante da sua imortalidade. Pessoa foi muito longe e terá previsto não só o trabalho como as infindáveis disputas dos editores, oferecendo-lhes material suficientemente contraditório para alimentar hipóteses divergentes. A argumentação de editores que conferem a uma destas hipóteses um carácter absoluto tem por base uma suposição metafísica que a própria obra ao mesmo tempo permite e desde logo mina, a de que uma escolha das chamadas variantes e de uma determinada arquitectura, que necessariamente exclui aquelas que não contempla, se sobreporia às outras como a verdadeira. O facto de existirem naturalmente edições mais cuidadas que outras e opções mais ou menos legítimas é a base de um debate cuja resolução é necessariamente adiada. Intrometendo-se no próprio jogo da ficção pessoana, alguns editores recorrem ao mesmo tipo de gestos de negação da pertinência de textos que determinada edição inclui ou não, repetindo as críticas de Ricardo Reis ou Álvaro de Campos ao livro de poemas de Alberto Caeiro. Não espanta que Pessoa funcione em tais afirmações como uma autoridade moldada consoante os propósitos. É verdade que alguma consciência autocrítica tem vindo a lume, mas é legítimo suspeitar que até esta se veja amiúde animada pelo mesmo desejo metafísico. Pessoa foi mesmo muito longe. Projectou nos seus editores o sonho da completude da obra, da sua apresentação total e expurgada de gralhas tipográficas, um sonho que transformado em crença é por si só suficientemente desmedido para garantir a persistência das divergências que animam a presença do seu génio.

Pedro Sepúlveda, nascido em 1982 e natural de Lisboa, estudou Filosofia, Filologia Alemã e Filologia Portuguesa na Universidade de Colónia, Alemanha, tendo apresentado nesta mesma universidade a sua tese de Mestrado. Prepara presentemente uma tese de Doutoramento subordinada à questão do livro em Fernando Pessoa, na FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Publicou na Cotovia uma tradução de Robert Walser, "Histórias de Imagens", e tem-se dedicado recentemente à edição da obra de Pessoa.

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