O hortelão de calção de banho
Hoje, ao regressar, bateu contra um animal na estrada. Não pôde fazer nada, o bicho atravessou-se à frente do Peugeot. Manuel travou a fundo, o susto subindo-lhe pelos músculos dos braços e das pernas, mas foi tarde demais.
Era um cão.
Na estrada deserta Manuel sai do carro e olha o animal: deitado no asfalto, como que a dormir, sangue negro contornando-lhe o corpo, uma sombra líquida. Um cão bastante grande, de pêlo castanho e olhos escuros; um focinho até nem dos mais feios.
Mas está morto. Manuel já não pode fazer nada por ele. Volta para o carro, segue para casa.
Ao jantar (empadão, a comida preferida das filhas), ensaia mentalmente a melhor maneira de contar o que aconteceu. A mulher fala de uma loja “estupenda” que vende roupa “com muita classe” a “preços aceitáveis” e descreve os vestidos com grande pormenor. As filhas não largam os olhos dela. Perguntam-lhe por tamanhos e promoções. “Nem imaginam, hoje, quando vinha da horta...” “Quando voltei da barragem, hoje...” Não, pensa Manuel. Talvez seja melhor não falar de morte à mesa.
Veem a nova telenovela da SIC, e depois as miúdas vão para o quarto ouvir música e navegar na net. Flávia deita-se na cama a ler um romance que traz na capa a fotografia de um homem e uma mulher, penteadíssimos, a simularem um beijo apaixonado. No sofá Manuel folheia o Correio da Manhã.
À noite, sonha que está a ver um documentário sobre “a natureza portuguesa”. Planos de árvores, pássaros, campos, e sobre isso uma voz mansa que vai descrevendo o que está à vista: “oliveiras centenárias”, “garças em formação de voo”, “gado a descansar”. Manuel assiste ao programa com prazer, sentindo que aquela combinação de imagens conhecidas e narração arrastada lhe dá uma paz maravilhosa. Não se sentia tão bem há séculos. Mas, de repente, a estrada.
A câmara avançando, num voo veloz sobre o asfalto, até descobrir o corpo caído — detém-se num grande plano do focinho. Moscas nos olhos inexplicavelmente ternos do cão, e a voz do documentário põe-se a falar de “spreads” e “juros”, “taxas” e “créditos” e “margens”. A linguagem que ele e os colegas usam no dia-a-dia do banco, meu Deus. “Capital”, “risco”, “planos”, “dividendos”, “garantias”, “bruto” e “líquido”, “líquido” e “bruto”.
Às sete da manhã, Manuel levanta-se. A mulher pergunta-lhe, ensonada, o que é que se passa e ele diz que vai nadar. Não sabe porquê, para quê, mas tem de lá ir outra vez.
“Leva o lixo”, diz ela.
O cão já não está na estrada. Manuel estaciona o automóvel na berma, numa zona mais larga, e dá uma volta a pé, à procura. Encontra-o junto de uns arbustos cheios de pó. Alguém o terá arrastado para ali, talvez um agricultor ou um pastor. Ou talvez um automobilista mais consciencioso. O bancário olha o cadáver. Era bonito o raio do bicho. Teria nome?
Abre o portabagagens, pega no grande saco negro e vira-o ao contrário, esvazia-o de todo o lixo. O desperdício produzido em dois dias pela sua família forma agora um montinho na berma; um monumento ao mau cheiro. Depois aproxima-se do cão morto e, com um cuidado clínico, criminoso, enfia-o no saco. Usa as duas mãos para levantar o volume negro do chão. É como se tivesse nos braços um bebé gigante, de plástico e sem forma. Um peso espantoso.
Nesse momento, o barulho de um motor: passa um Mercedes a acelerar na direção da cidade. Manuel levanta os olhos. Ainda bem que não é ninguém que ele conheça.
Muito devagar, deposita o saco no portabagagens. Sobre o automóvel, o céu azul, um silêncio perfeito.
Depois de ter enterrado o cão, Manuel larga a pá e deixa-se ficar um momento na horta a admirar o resultado do seu trabalho. Não está inteiramente satisfeito, ainda falta alguma coisa. O quê, devia dizer umas palavras? Devia cair de joelhos e dizer uma oração, rezar ao deus dos bichos? Sem pensar, dirige-se à casinha de apoio onde guarda as ferramentas e pega numas sementes de cebola que deixara ali para o dia certo. É hoje o dia certo.
Passado um bocado, olha o retângulo de terra castanha, ou negra, ou vermelha, onde plantou cebolas, e sente que sim, agora sim, fez o seu trabalho. Parece-lhe adequado que, sobre aquela morte tão estúpida, cresçam bolbos que choram.
Do outro lado, a água da barragem; lisa e brilhante como uma lâmina.
Manuel mergulha, nada uns metros em linha reta.
Cá fora, seca-se ao sol, de pé, de cabeça vazia.
Por fim, volta ao automóvel e faz a estrada de regresso. Guia calmamente, meio distraído com a paisagem que devia estar farto de conhecer. Não há domingos no campo, pensa.
E, quando surge a placa a indicar a cidade, não vira. Segue em frente, continua viagem sabe-se lá para onde. No Peugeot, um leve cheiro a lixo, mas ele não se importa. Não se sentia assim há quanto tempo? Imagina a sua figura a sair do automóvel numa estação de serviço qualquer, daí a duzentos ou trezentos quilómetros — com aquele calção de banho florido e aquelas unhas cagadas de terra —, e ri como um perdido.
Jacinto Lucas Pires
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