Joaquim

                                                                                                            ©Alice Rosati  


Debrucei-me sobre ela e perguntei-lhe o nome. A rapariga rósea trepadeira, tombada, encharcada, estendida no terraço, os olhos abertos, espantados, fitando o céu nublado, negro. Como se não soubesse como tinha ido ali parar. Ainda hoje não sabe. Como se já soubesse que nunca o saberia. Como se já lhe fosse indiferente. Chovia, água encarnada, espessa, o terraço alagado de mosaicos dantes brancos. Perguntei-lhe o nome. Um nome estrangeiro, articulado com clareza, distintamente, quase diria com orgulho, o corpo comprido e magro estranhamente intacto, apesar dos ossos quebrados, quais, quantos, não o nome, inteiro, íntegro, talvez profundo, próprio até à exaustão. Um nome estrangeiro, e, no entanto, ali estava ela, na minha cidade, que eu já nem reconhecia, se me perguntassem hesitaria, aqui era ela, indefesa, desabrigada, exilada, mais próxima não poderia, se de mim se da morte. Poderia ser minha filha. Não tenho filhos. Minha irmã. Não tenho irmãos. Minha namorada. Amada.
O meu primeiro namorado chamava-se Joaquim. Tinha catorze anos e eu oito. Trocávamos beijinhos nos vãos de escada da rua antónio de vasconcelos. O que eu lhe pedisse, dava-mo. Roubava de casa e dava-mo. Um dia, um corta-unhas. Sei lá porquê. Mais um capricho apenas dos meus muitos. Trouxe-mo. Ainda hoje, quando corto as unhas, Joaquim, juro, recordo-me. Outros dias, mais coisas que esqueci. Beijinhos, esses não, estão cá impressos, e, porventura, digo eu agora, nenhuns outros me souberam tão bem. Quando mudámos de casa e eu de escola, ele veio à minha festa de aniversário com um envelope contendo o seu primeiro salário. Se isso não é amor. Eu, de camisola de gola alta branca e fita da mesma cor no cabelo, ignorei-o majestosamente. Durante anos, o dinheiro ficou no envelope, destinado a comprar-lhe um presente, coisa que nunca aconteceu tanto quanto julgo saber. Nunca mais o revi.
Perguntei-lhe onde morava. Não se lembrava, embora entre ela e o céu nublado, negro, houvesse a varanda do quinto andar de onde se atirara. Mais tarde, ela escreveria “despenhara”. Outros diagnosticariam “defenestrara”. De uma janela para mais janelas por escancarar. O terraço era agora um lençol de sangue coalhado. O casaco de ganga azul com motivos geométricos vermelhos no forro, ensopado, com motivos vermelhos no exterior. A camisola cor-de-rosa de gola alta que lhe fora oferecida pela irmã mais velha, e pelo paradeiro da qual mais tarde ela indagaria, pensando em voz alta, que raio, deveria ter escolhido melhor a minha indumentária para ocasião tão pouco solene, ah pois, e ria, e a irmã, séria, desconsolada, devolveram-nos a roupa que trazias vestida, estava tudo estragado, deitámos tudo para o lixo. Era assim, ela, a rapariga rósea trepadeira, tinha graça, mesmo no infortúnio, ainda gracejava, mesmo na desgraça, e eu, não sei como, soube-o mal a vi esvaindo-se, esvaída. Não sou crente, mas deus, guarda esta rapariga em vida hoje e amanhã. Que eu não lhe tenha perguntado o nome em vão. Que eu não tenha sido o último a perguntar-lho. O último a ouvi-lo. Que ela o repita vida fora e o respeitem. Viva, rapariga, viva. Guarde os olhos abertos, espantados, cintilantes, há tanto mais. Não sou crente, mas peço-te a ti pois que não sei a quem mais.
Um dia, também num vão de escada, com manhas e mimos, consegui que ele despisse as calças e nos mostrasse o sexo, à minha irmã e a mim. Acho que rimos. Depois fugimos escada acima. Era um sexo de homem. E amava-me. Não garanto sequer que ele não tenha sido o primeiro a penetrar-me. Garanto, isso sim, que quem se antecipou fui eu. Manhas e mimos, manobras de sedutora recém-encartada, entre o inocente e o matreiro, com oito tão poucos anos e devaneios de rapariga feita. E criança ainda, pois claro, que, adormecida, escorregava frequentemente da cama para o chão, e molhava os lençóis, atormentada por pesadelos nocturnos. Ainda hoje, de noite, os pesadelos, por vezes pavorosos, apavorantes, desperto arranhada, como uma gata engalfinhada, quando não se prolongam dia fora tornando-me os passos imprecisos, as frases interrompidas, o corpo desavindo.
Trouxemos a maca, erguemo-la com cuidado, pousámo-la ali, os olhos agora cerrados, o corpo frouxo, murcho, morto, não, morto, não, que esta maca ensopada não seja o seu caixão. E eu que já vi tantas coisas, deus, não me desiludas. Não sou crente, mas hoje peço-te. Hoje de madrugada, ajoelho-me perante ti, debruço-me sobre esta rapariga como se rezasse. Pergunto-lhe pelo nome.
Sou bombeiro voluntário. Já apaguei muitos fogos com os meus companheiros, cada verão nos arredores da cidade, cinzas enegrecendo as varandas, fumo ensombreando o horizonte, sol antes radioso agora coberto, odor a madeira queimada penetrando nas narinas e ardendo nos olhos. E a rapariga tristérrima suplicando por cada árvore. Mas quanto aos incêndios que lavram no coração dos homens, seja raiva ou ódio, seja ressentimento ou desespero, seja, como sempre é, infelicidade, eu nada posso. Não há água nenhuma neste mundo que lhes valha. A não ser talvez as lágrimas, que não me cabe a mim gerar, desassorear, quando mais multiplicar numa correnteza que tudo suavizaria. Mas a rapariga, não. A água escorria-lhe, caía-lhe, se dos olhos se nos olhos. O corpo, um pranto encarnado. E nem um pingo de infelicidade no seu rosto. Apenas espanto e pranto. E agora, agora, só queria que também ela ardesse, fumegasse, que nela a vida ateasse e alimentasse mais uma fogueira. E querendo-o eu tanto, com toda a aflição do meu peito impotente, das minhas mãos simultaneamente experientes e desajeitadas, como se de repente mal me pertencessem, mas, relutantes, ainda assim me obedecessem, resta-me pedi-lo com toda a compaixão de que a minha alma for capaz, bem menos incrédula do que julgara afinal.
Obrigada.

                                                                                                         Bénédicte Houart

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