Uma tradição que ele mesmo inventou
Ruy Duarte de Carvalho - Imagem tirada do site Buala |
Foi aqui, nesta pequena cidade do atlântico sul,
onde aprendi a dura morte.
Recordo-me de um hotel
que sal e areia espancaram durante
décadas, e que se visitava
como quem visita uma embarcação
encalhada na praia.
Toda a nossa vida se assemelha
a um bilhete postal sépia
odor de treva lá dentro.
Não faço escolhas quando estou
exausto. Ou melhor, determino
as escolhas por uma simpatia breve:
por exemplo, a varanda virada
para o tumultuado som, a fúria do mar
e a pele a ser espancada como
a embarcação fantasma que nos acolhia.
Por exemplo, a cadeira com um século
em fibra e desespero entrançados,
sonhando o que não sabia: os contemplativos
e os anónimos que sentados olharam o mar.
Por exemplo, a criança que investia em mim
o seu ódio no momento em que da varanda
me debruçava, que me prometia
a miséria do mundo, a devolução da história.
Isto foi o que vi. O que me conduziu à injustificável
estética do compromisso e da decadência.
Isto foi o que escolhi depois dos livros lidos,
depois da curiosidade saciada: este hotel de espectros
e vertiginosas sombras que o mar ia corroendo.
«A dura morte?» Nada disso. Prefiro acreditar que o Ruy olhava para a história e para o mundo como uma criação evolutiva e perene onde a morte não ocupa qualquer centralidade. Não é por acaso que a melancolia lhe é fundamentalmente alheia. Para ele, Swakopmund seria apenas esse lugar de passagem onde o passado e o futuro se afirmariam como pontos numa cartografia aberta, múltipla. Nada de melhor se podia pedir de um lugar que encena o seu drama entre as fúrias do Atlântico e as do Namibe.
As páginas do Ruy são, estou em crer, um intermezzo entre pontos, uma linha de fuga, um rizoma, ou talvez uma das suas melhores justificações. Daí que se possa descrevê-lo como um escritor na fronteira, um escritor em que o «interior» e o «exterior» estabelecem relações de contiguidade que só podem ser descritas topologicamente.
O Ruy era um escritor das dobras, das plicas, um escritor em que a psicologia profunda se encena na sua recursividade constante com o território, com a geografia, com a paisagem. Não é por acaso que ele usa o artifício do diário de terreno do etnógrafo para falar em nome de uma possibilidade: a da linguagem mais descritiva e neutral sobre uma paisagem capaz de nos transportar para uma região de opacidade em que aquilo que está em causa é a «auto-colocação» do sujeito que se propôs mapear um mundo que o excede, que o excederá sempre. Toda a transparente adequação da linguagem ao que o cerca é, para ele, a porta de entrada para o que está aquém ou além disso: uma densa viagem de descoberta em nome próprio. É para isso que ele usa a etnografia. Como Leiris o faria. Quem mais?
Assim, nada melhor do que usar um exemplo maior da sua escrita para pensarmos este aspecto. Refiro-me a «Diário (1993-1998)», contido em Lavra. Poesia Reunida 1970/2000 (p. 377). Aí escreve-se logo na primeira entrada:
1. Moçâmedes // rendido ao torpor de um domingo à tarde e a dois passos de uma rua que tantas vezes recordo, e me remete ao fim da infância, os sons lá fora – crianças que brincam, um carro ou outro que passa, um cão que ladra – transportam-me a um passado que afinal é outro, de adulto já, entre os vinte e cinco e os trinta anos, saído de calulo e acabado de chegar à catumbela, despejado também num quarto de passagem tão alheio como este e da mesma forma alerta porque atento à novidade dos sons, da luz e de cheiros inabituais. e assim entro no sono, projectado de súbito para cima pela sensação de que me observo e meço, e ao fazê-lo me descubro observado e observador, e quem observo é o resultado de tanta combinação fortuita, mas inexorável, que um outro qualquer (fugaz) momento do passado, de sono ou de vigília, teriam feito um outro qualquer de mim. mas a hipótese (que subitamente me iluminava) de poder isolar (identificar e preservar) um eu observador para vários eus observados, é ela mesma a despertar-me e assim se anula e me decepciona.
O que este texto convoca é uma reapreciação de quaisquer tentativas de enquadramento de uma descrição num universo neutral de referências. Essa ausência de neutralidade do observador é anatomizada. O exercício parece uma fenomenologia da percepção à la Merleau-Ponty. Parece. O observador «rendido ao torpor» de uma tarde de domingo, descobre na rua da sua infância a rua da sua idade adulta («entre os vinte e cinco e os trinta anos»), e (sinestesicamente) «alerta» à luz, aos cheiros, aos sons, tal qual como antes, também aí «despejado num quarto de passagem tão alheio como este». Vê-se então a entrar no sono e «projectado de súbito para cima pela sensação de que me observo e meço», e, nesse preciso momento, ocorre uma intensificação da lógica fractal que parece ser afinal a grande lição do fragmento.
O sujeito que se debruça sobre as fontes da percepção e da memória desdobra-se, re-plica-se ad infinitum. Aquele que observa é afinal observado, e por aí fora. A (falsa) estabilidade de um para vários é, aliás, o que conduz a um despertar (aqui) contrafeito e decepcionado, em que o des-dobrar se assume como a única realidade de que deve partir – e de que parte, aliás – a literatura (este é significativamente o primeiro fragmento do notável diário).
Duas coisas pois: (1) O Ruy alucina o texto, para nos mostrar, como diria certeiramente Philip K. Dick (e cito de memória), que a fronteira entre a alucinação e a realidade é outra alucinação; (2) O Ruy escrevia numa literatura multi-escalar cuja tradição ele mesmo inventou. Quem saberá /poderá acolher generosamente o eco dessa tradição que se terá, porventura, afundado ali em mar e deserto?
Luís Quintais, Agosto de 2011.
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