Flor da ribeira

Portanto, faço ideia. Do que dizem a meu respeito. Logo que viro as costas. E antes disso, pensam-no. Olham uns para os outros, ou já nem sequer pois se para quê, e pensam-no. O mais engraçado, se é que tem graça, a mim, bem, sim, antes isso, faz-me sorrir, sorriso amarelado, é certo, mas ainda assim, pelo menos agora, dantes não, quero dizer, desde que larguei aquela vida emprestada, são todas mais ou menos emprestadas, não é, e a gente é como as casas, passamos a vida a pagar juros duma coisa que não é nossa nem queremos realmente, a esfalfar-nos em vão para amortizar a dívida, mas essa não, não é amortizável, de modo que eu também, por mais que digam que não, eu e eles, por mais que tentem distinguir-nos, nós, oh sim, nós, por mais que desejem negá-lo, partilhamos a mesma sorte, o mesmo azar, por mais raspadinhas dia após dia, pois bem, desde que larguei essa vida, havia muita carne mais fresca do que a minha e então arranjei um homem certo, isso foi antes, chamou-me uma vez puta sempre puta, depois comecei a passear sozinha pelas ruas, de olhos postos no chão, de corpo estafado, há profissões que se nos colam à pele, pior, à alma, se é que isso faz algum sentido, de que serve jurar que a alma nunca a vendi, como poderia. Portanto, o mais engraçado é que é verdade. Aquilo que dizem. Quero dizer, de certo modo. É verdade de certo modo. Como sempre. Isto, aprendi-o eu. Que a verdade é sempre segundo isto ou aquilo. Alguma coisa. E doendo. Doendo, foi assim que o aprendi. Não tanto o corpo, embora também por vezes, mas mais o coração, não tanto o coração físico, esse que mais dia menos há-de falhar, é o seu fado, é a sua vida, mas aquilo que eu não poderia, não saberia dizer, o coração metafísico, mais palpável do que o outro, mais palpitante até precisamente não poder mais. Soa estranha essa palavra na minha boca, não é? Porque eu sou quase analfabeta. Aprendi a ler nas ruas, nos rostos, nas mãos, nos lençóis das camas de pensões baratas. Pensão Atlântica. Pérola do Mondego. Hospedaria Ideal. Pensão Bemposta. Hotel Belomonte. Gostaste? Gostei. Como se me pagassem sequer o suficiente para gostar ou fingir que gostei. Como se gostar pudesse ser apreçado. A diferença entre eu e as outras, asseguro-vos, é que eu abri as pernas mais vezes por dia. E me pagaram por isso em dinheiro vivo.
Aprendi a ler o desdém, o desejo, a solidão – a minha multiplicada pela dos outros. Soletrei o alfabeto nas esquinas da vida de que sou mulher. Embora mais apropriado fosse dizer que é da morte que sou pois que cada corpo que sobre o meu pesa, sim, porque pesa ainda, é uma facada, um ferro em brasa, uma ferida que não cicatriza, uma lembrança purulenta, um passado que dói recordar, e mesmo que de nada sirva já, de esquecer não sou capaz. De modo que é isso que dizem, sei-o. E sorrio amarelo. E o sangue que cada mês deixei de perder é negro como antes. Os meus passos não me levam a lugar nenhum, caminho perfazendo círculos, cada vez mais estreitos, até que, sobrando apenas eu, concentrado de mágoa, deus se compadeça de mim e me resgate e me leve para junto de si, porque, sei-o, por mais que digam, os meus pecados foram-me todos perdoados. A própria vida foi-me penitência e absolvição: Avé Maria, tanta desgraça. O meu corpo, a mais sincera confissão. E a morte há-de ser o que deus bem entender, livrando-me enfim desta carne sorvada e deixando-me a alma limpa, luminosa, livre.

Bénédicte Houart

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