Une fois n’est pas coutume
É quase primavera. Enquanto o meu cão vai largando pêlo, por aqui, por ali, por todo o lado, eu vou largando penas. Não que seja um pássaro, para tal me faltando sobretudo as asas, e sobrando, tristemente, contraditoriamente, um coraçãozinho que bate desalmado e frenético à mais leve suspeita da estação que se avizinha. Primavera do a despropósito… E penso: para quê mais uma? És capaz de me explicar, meu deus, se existes. E se não existes, pois bem, explica-me também a ver se de uma vez por todas eu compreendo. Mas tu calas-te, e eu não me contento. Tu calas-te, é costume, e eu agito-me sem propósito.
É quase primavera. Mais uma. Aceito, meu deus, porque me resigno. Mas não te agradecerei, nem hoje, nem amanhã, nem nunca mais. Nem ao final do dia nem ao seu nascer. Se sabias que nada de fundamental mudaria, e tu sabias, por que razão me deixaste sobreviver naquela noite de inverno em que me atirei, de corpo inteiro julgava eu, quando deveria, deveria, deveria ter morrido?
Se eu estava quebrada por dentro, e tu sabias, por que razão não me deixaste ficar quebrada por fora e sem remendo possível? Agora, por fora trago cicatrizes que quase ninguém vê, enquanto as lesões e fracturas interiores permanecem expostas escorrendo pus.
É quase primavera. Mais uma. Escorro pus, é costume. O meu cão larga pêlo. É costume. Uma vez não são vezes. Pois não? Não era assim? Não foi assim que me disseram? E eu, ó criança, acreditei.
Estamos sempre a aprender. Estamos sempre a esquecer. Felizmente, parte daquilo que esquecemos é também aquilo que aprendemos e que, à medida dos anos decorrendo, descobrimos com alívio que nunca nos fez realmente falta, bem pelo contrário. Como quem muda de casa, e estamos sempre em mudanças, deixamos de cada vez algumas caixas para trás. E somos, cada vez mais, a nossa própria casa, onde guardamos apenas aquilo que nós próprios somos, ou melhor, aquilo que havemos de ser, cedo ou tarde, mas sempre a tempo.
Bénédicte Houart, 3 de março 2011
que lindo texto.
ReplyDeleteParabéns.
Valeska