Versos que lembram (1) António Cabral

 
              Lembram-me hoje uns versos de António Cabral.
                António Cabral, falecido em 2007, é um poeta injustiçado. Não das suas gentes, que sabem bem que estava ali um cantor empenhado do Douro nativo mas também (e talvez sobretudo) do Douro humano. Mas dos críticos que torcem o nariz a tudo o que cai fora do seu alguidar estético – a quem ele aliás pagava na mesma moeda: ignorando-os.
Pessoalmente, tenho-o como o poeta que mais entranhadamente amou o Douro (região e rio) e tudo o que está contido nele, e o cantou consistentemente e sem desfalecimento até ao fim dos seus dias. Porque o cantou naquilo que ele é realmente: beleza e suor. Ou, noutro plano, natureza e imanência. Sem deuses a preguiçar por entre os geios, mordiscando com indolência bagos de uva.
Mas vamos ao ponto. António Cabral tirou o curso de Teologia e foi padre durante dezassete anos. Então, sentiu, como se lê algures, as urgências do amor humano como complemento natural e necessário do amor divino. E, casando e procriando, assumiu corajosamente as consequências disso. Não se pense que era uma atitude fácil, numa cidade provinciana (Vila Real) e numa época (1972) em que, no estertor da ditadura, a Igreja procurava ainda impor os seus códigos às consciências.
Todo o circunstancialismo que se adivinha em torno disto encontra eco num poema dedicado à sua mulher, publicado na Emigração clandestina, o seu décimo livro de poesia (Centelha, 1977). É um poema que, pela coragem, pela rebelião, pela clarividência, pela vibração afectiva e pelo sopro de humanidade, me lembra e gosto às vezes de reler:

Nos vimes do vento, mesmo antes de pronunciar
o teu nome, velhas salas ardiam. Olhar-

-te desse fenómeno, consciente de frívolos, tão
numerosos ciprestes, anunciava a condição

da água viva. Diziam os olhos mais habituados
que não: o espaço é um grande corpo sem lados

e toda a água não encheria de luz o seu cristal.
Nem eu nem tu nos voltámos e, em vez de estátua de sal,

ocupamos agora a coragem do nosso espaço
próprio, sentados num fumegante, lírico estilhaço.

Os vibráteis vimes do vento que areja e vivifica consciências; as velhas salas que ardem (certamente as do Seminário, com tudo o que o Seminário representa), numa imagem de visualidades cinematográficas; os frívolos ciprestes, conotando a morte que se cola à não obediência aos instintos básicos; a condição primordial da água viva, símbolo cintilante desses instintos; o lírico estilhaço onde um casal, ostensiva e orgulhosamente sentado, provoca e desafia as convenções (lírico, o estilhaço, em oposição ao prosaico que seria a renúncia ao amor) ― são alguns momentos de alta poesia, que aqui compartilhei com quem me quis ler, daquele a quem chamei uma vez o eruptivo poeta fraternal


A. M. Pires Cabral 

Comments

  1. Belo e forte poema. Notável a sua explicação...
    Também admiro e me delicio com os seus poemas.
    Saudações, também, ao grande escritor A.M.Pires Cabral, que muito aprecio.
    "Saudações transmontanas".

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