Karnak Café

"A bandeira de um país é um helicóptero." O fogo ateado por Mohamed Bouazizi em meados de Dezembro sobre o seu próprio corpo não levou mais de um mês a derrubar o poder na Tunísia. Corre entretanto de lés a lés por toda a faixa sul do Mediterrâneo, e mais além. Salpica até ao Iémen, à Jordânia, à Mauritânia. Corre além-fronteiras, por cima delas. Como a música de Karima Skalli, de Lofti Bouchnak, dos irmãos Joubran, de Rabih Abou-Khalil. Como a poesia de Adam Fethi, de Mahmoud Darwich, de Iman Mersal.

Os americanos passaram boa parte do século XX a implantar (a implementar, dirão alguns) ditaduras pela força. De há uns anos a esta parte, dedicam-se a derrubá-las pela força. "O massacre visto de cima: escultura." Mas os regimes (alguns) caem por si. Os direitos humanos não se transportam na ponta das baionetas, nem sobre tapetes de bombas, como dantes se levava o cristianismo aos índios americanos a bordo de caravelas e galeões. No momento em que escrevo, no Egipto Mubarak resiste ainda. Até quando? Estes regimes serviram bem os interesses das "potências ocidentais", que agora se apressam a dessolidarizar-se deles, apesar das gafes - como essa, monumental, da ministra dos Negócios Estrangeiros da França propondo o savoir-faire e o "profissionalismo" da polícia francesa para ajudar o regime de Ben Ali a manter a ordem - e hesitações, até se ver para que lado sopram os ventos dominantes. E já não estamos em maré de intervenções militares directas, como a franco-britânica de 1956 após a nacionalização do canal de Suez por Nasser. Mas Israel fica perto, atenção, e a situação geoestratégica do Egipto no xadrez internacional é muito mais complicada. E o espantalho do islamismo está sempre presente. Uma vez caído o comunismo, o islamismo tornou-se um bom substituto como alvo e alibi.
Na década de 60, nos tempos do café Karnak, comunismo e islamismo serviam ambos de pretexto para meter os jovens nos calabouços do regime, onde a tortura aguçava as línguas e macerava os corpos. O retrato que Naguib Mahfouz traça desses anos constitui um bom condensado do Cairo e do Egipto de então. Um dos estudantes presos, Ismail, vinha de "um meio miserável": "O meu pai trabalha num café e a minha mãe é vendedora ambulante. (...) Dos meus três irmãos mais velhos, um é aprendiz de talhante, o segundo carroceiro, e o outro sapateiro. Vivemos numa única divisão que dá para um pátio partilhado com mais de cinquenta pessoas, como uma grande família. Nem casa de banho nem água corrente, apenas uma latrina comum. A água é transportada em baldes..." E, no entanto, Ismail acaba por se formar em Direito, apesar da miséria, apesar das temporadas que passou na prisão. O quadro político-social, e sobretudo económico, do romance não é muito diferente da situação do Egipto ou da Tunísia de hoje, 50 anos mais tarde. No Egipto, onde 40 % da população vive com menos de dois dólares por dia, no princípio de Janeiro comi uma refeição por 4,5 libras egípcias (pouco mais de meio dólar), mas nos restaurantes chiques da capital a burguesia cairota desembolsa 50 ou 100 vezes mais por um jantar à beira-Nilo. E são estas desigualdades sociais imensas, e a sede de liberdade e de justiça, que estão na base das revoltas mais ou menos espontâneas, que aspiram a chamar-se revoluções, a que hoje assistimos supreendidos.

Entrem no Karnak. Puxem uma cadeira e sentem-se. Peçam um café, que vos trarão com um copo de água adjacente. A velha Qurunfula não perdeu o seu charme. Ouçam a voz poderosa de Mahmoud Darwish ("Quem sou eu para vos dizer / o que vos digo, / eu que não fui pedra polida pela água / para me tornar rosto / nem cana furada pelo vento / para me tornar flauta...") fundir-se com os ágeis alaúdes dos irmãos Joubran; folheiem Les Poètes de la Méditerranée, alguns dos quais estarão, ao que parece, em breve em Lisboa; saboreiem a voz dúctil e límpida de Karima Skalli, destinada a vir juntar-se às de Asmahan e Oum Kalthoum. Abram o vosso laptop e procurem um dos muitos discos de Rabih Abou-Khalil publicados na Europa. Deixem o Karnak, despeçam-se da hospitaleira Qurunfula. Não longe daí, com um pouco de sorte, poderão descobrir a música zar, trazida dos confins secretos da Núbia pelo grupo Mazaher até ao pequeno centro cultural Makan, na Rua Saad Zaghloul.

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Naguib Mahfouz, Karnak Café, Actes Sud, 2010 [1974].
Les Poètes de la Méditerranée (Anthologie), Poésie / Gallimard, 2010.
Gonçalo M. Tavares, Um Homem: Klaus Klump, Caminho, 2003.
Le Trio Joubran, À l'ombre des mots, World Village / Harmonia Mundi, 2009.
Karima Skalli, Wasla, Institut du Monde Arabe / Harmonia Mundi, 2006.
Rabih Abou-Khalil, Between Dusk and Dawn, Enja Records, 1993 [1987].
Mazaher, Zar Music & Songs, Makan (Egyptian Center for Culture & Art; e-mail: makan@egyptmusic.org; www.egyptmusic.org; tel: (202) 27920878), 2010.

   
                                                                                  
António Gonçalves traduziu para Cotovia peça de teatro "O Rapaz da Última fila" de Juan Mayorga e o livro de Le Corbusier intitulado "Conversa com os estudantes das escolas de arquitectura".

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