Nem ele sabia


Desde que a li, para aí há uma década, que recorro muitas vezes àquela aula que Eduardo De Filippo deu na Universidade de Roma La Sapienza lá pelos anos finais do tal século passado. Dizia o genial napolitano (autor e actor) que o escritor será o pai da personagem, cria-a muitas vezes à noite, num acto de amor, a personagem demora um certo tempo (nove meses também?) a nascer, lá nasce, e segue a sua vida, e o pai, erotómano como ele próprio era, já está a fazer outra e tantas vezes a outra – que não a contratual - mulher.
Pois, o autor deixa a personagem, esquece-a, ela cresce, vai à sua vida e amadurece, arranja empregos e ganha pão. Mas o actor não, entre ensaios, estreias, viagens de comboio, sozinho no automóvel tentando aprender o texto de cor (sim, os actores gastam gasolina e poluem ambientes só para aprender alexandrinos decadentes), reposições, gravações, remontagens, o actor vive com ela, amancebado, um ano, dois, às vezes dez – é pensar no Sean Connery/ Bond, coitado.
O actor conhece a personagem, sabe-lhe as falas, descobre-lhe os silêncios, empresta-lhe o peito, as pernas, o sexo, o corpo até, despudoradamente nu, encarna aquele que o Autor já arrumou na gaveta alta dos “feitos” assinalado com um X a preto ou vermelho. Para o Actor, não:  a personagem está viva, é ele.
E  conhece-lhe os defeitos, claro, a cobardia, a mesquinhez da Candidinha, a ambição de Lady Macbeth, a avareza de Harpagão, a vaidade de Alceste, a tibieza de Hamlet, conhece isso, são as suas próprias ambição, avareza, cobardia, tibieza, vaidade, são as dele mesmo, actor. E mais, o Actor conhece-lhe os defeitos técnicos que o Autor escondeu para debaixo do tapete: quem faz a Maggie da “Gata em Telhado de Zinco Quente” sabe que Tennessee Williams se esqueceu dela durante quase todo o acto II, quem faz a Maxine  de “A Noite da Iguana” sabe que vai ter de sair de cena a correr gritando “A conta! Têm de me pagar  a conta!” , quando, a bem dizer, ninguém lhe devia nada, e só porque dá jeito ao Autor - e a todos nós - ficar sem ela na cena seguinte.
Pois, diz De Filippo, o Actor é o Confessor da Personagem, conhece-lhe os vícios, os pecados, os defeitos, e absolve-a, encarnando-a, milagre de quem “toma posse” e não é ministro.
É como o tradutor, disse eu no outro dia ao falar da admirável tradução que o Manuel Resende fez de 145 poemas do grego Konstantin Cavafys e que a Flop vai editar por estes dias. Só não traduziu 9, diz ele, “porque não sou capaz”, admirável, raríssima confissão de homem honrado.
E é que traduzir isto é obra de uma vida, foram 25 anos a ir e vir, traduzir e rever, refazer e reler,  encontrar uma solução e desistir, ler de novo e esquecer, deixar de lado e esperar melhores dias: são vinte e cinco anos de labor e indolência, de resistência e alegria, tristeza e intensa alegria.
Sim, ninguém sabe a  explosão de alegria que nos abala quando encontramos a tradução luminosa para uma frase que amamos. Por exemplo (e contei-o à viúva que me deu um beijo) quando, ao dirigir “O Quarto” de Harold Pinter, eu andava abespinhado  com o facto de a Lia Gama (maravilhosa actriz) ter de dizer repetidas vezes “Ó sô Kidd!”, e como dei pulos de mozarteano júbilo ao descobrir que podia dizer “Ó sô Junior!” e assim indicar o duplo sentido daquele nome de família.
Nem imaginam como é angelical a alegria do tradutor ao fazer-se entendido pelo Autor, é como se este o amasse (e é só o que queremos, aqui sentados, notes e noites adentro).
Traduzir (como interpretar) é escrever “transfomando-se o tradutor na coisa amada”, quase às cegas meter-se na música que toca, dançar-lhe a valsa, ao autor.
É ver como ele escreveria nesta nossa língua, é experimentar, é ensaiar.
“Se calhar é porque tenho formação científica”, dizia-me a Glicínia Quartin, “que gosto tanto de representar, é como experimentar, um bocadinho mais disto, umas gotas daquilo... e a vida a crescer...”
Pois é. Confessores, os tradutores e os actores, benditos sejam.
E, com o Manuel Resende, percebemos que Cavafys, o grego de Alexandria morto e remorto, passou agora a escrever em português. Definitivamente. Nem ele sabia... 
Nem Karl Valentin também sabia que tinha a minha cara (e a do Luis), embora o nariz fosse o dele.

Jorge Silva Melo
 
 
 
Jorge Silva Melo nasceu em Lisboa em 1948, estudou na Faculdade de Letras de Lisboa e depois na London Film School. Crítico de cinema e teatro, encenador e actor, fundador, com Luis Miguel Cintra, do Teatro da Cornucópia, estagiário na Schaubühne - com Peter Stein - e no Piccolo Teatro/ Scala de Milão - com George Strehler -, argumentista, professor, tradutor, ensaísta, dramaturgo, realizador de cinema. Dirige, desde 1996, os Artistas Unidos. 

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