O último Natal de guerra, de Primo Levi

Numa noite

«Estava muito frio e o ar imóvel. O sol tinha-se posto há poucos minutos, afundando obliquamente por detrás de um horizonte que a límpida atmosfera fazia parecer próximo, e tinha deixado atrás de si uma esteira luminosa verde -amarela que se estendia quase até ao zénite: do lado do oriente, ao contrário, o céu estava opaco, violáceo, ofuscado por cúmulos plúmbeos que pareciam pesar sobre o terreno gelado como bolas esvaziadas. O ar estava seco ou cheirava a gelo.
Em todo o planalto não se viam marcas humanas, feita excepção para os carris, que se estendiam, rectilíneos, a perder de vista, e pareciam convergir no ponto em que o sol tinha acabado de desaparecer; do lado oposto perdiam-se nas últimas ramificações do bosque. O terreno era ligeiramente ondulado, e marcado por pequenos carvalhos e faias que o vento dominante tinha inclinado para sul, ou mesmo, em alguns casos, vergado até ao chão; mas era um dia de bonança. Afloravam no solo rochas calcárias consumidas pela chuva e incrustadas de conchas fósseis: ásperas e brancas, pareciam ossos de animais sepultados. Das brechas sobressaíam ramos carbonizados num incêndio recente: não havia erva, só manchas amarelas e avermelhadas de líquenes colados à pedra.
Sentiu-se o estrépito antes que o comboio fosse visível: no silêncio do planalto, o som transmitia-se através da rocha e do gelo como um trovão subterrâneo. O comboio era rápido, e logo percebeu-se que era composto por apenas três carruagens de mercadorias, para além do motor. Quando se aproximou, ouviu-se o rumor agudo dos motores diesel em aceleração, juntamente com o assobio do ar lacerado pelo ímpeto da corrida. O comboio ultrapassou num relâmpago o ponto de observação, o que fez com que o zumbido e o assobio baixassem de tom, e investiu contra as bétulas e as faias esparsas à margem do bosque. Aqui os carris estavam cobertos por uma densa camada de folhas secas, frágeis e escuras: a onda de ar remexido atingiu-as antes que o comboio lhes tocasse, e levantou-as numa nuvem desarrumada, mais alta do que as árvores mais altas, rodopiando como um enxame de abelhas, que acompanhava o comboio na sua corrida e o tornava visível ao longe. As folhas eram ligeiras mas a sua massa era grande: apesar do seu ímpeto, o comboio foi obrigado a abrandar.
À frente da locomotiva foi-se acumulando um monte informe de folhas, que a própria locomotiva fendia em dois como a proa de um navio; uma parte acabava triturada entre os carris e as rodas, aumentando o esforço da locomotiva, que viu a sua velocidade diminuir mais ainda. Simultaneamente, o atrito entre o comboio e as folhas, as acumuladas e as que revoavam pelos ares à sua volta, provocou uma electrificação do ar, do comboio e das próprias folhas. Do comboio para o chão partiam longos clarões roxos, desenhando no fundo escuro da floresta um emaranhado mutável de luminosas linhas quebradas. O ar carregou -se de ozono e do cheiro acre do papel queimado.
O amontoado de folhas à frente da locomotiva fez-se cada vez mais volumoso e a aderência das rodas aos carris foi ficando cada vez mais fraca, até que o comboio parou, com os motores a funcionarem ainda à máxima velocidade. As rodas, que giravam no vazio, começaram a arder, e fez-se vagamente luminoso também o troço de linha que ficava por baixo de cada uma delas; destes pontos incandescentes saíram ondas de fogo que se alargaram em círculos sobre as folhas que jaziam, e que se apagaram a poucos metros. Ouviu-se um clique, os motores pararam, e o silêncio voltou a dominar. Na janela da locomotiva apareceu o rosto do maquinista, largo e pálido: estava imóvel e olhava fixamente para o vazio. As folhas entretanto caíram. Durante muito tempo não aconteceu nada, só se ouvia o leve rumor das folhas acumuladas à frente da locomotiva, que readquiriam a posição de repouso: o monte aumentava levemente, como uma massa durante a fermentação.»


O último Natal de guerra, de Primo Levi
*Tradução de Clara Rowland

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