Preferir ser fábula a ser um deus sem amor

Hugo Pinto Santos

Um poeta que viveu e escreveu há mais de dois mil anos surge numa cuidadosa tradução que nos devolve uma obra de enorme importância para a lírica universal



Os Livros Cotovia voltam à edição de clássicos latinos (no seguimento do trabalho com os gregos levado a cabo por Frederico Lourenço). Esta nova edição de Tibulo, autor inédito em volume (uma pequena amostra em Romana, de Maria Helena da Rocha Pereira), surge depois de livros consagrados a Ovídio (A Arte de Amar e Amores, tradução de Carlos Ascenso André; Metamorfoses, tradução de Paulo Farmhouse Alberto), Horácio (Odes, tradução de Pedro Braga Falcão), Petrónio e Apuleio (Satyricon e O Burro de Ouro, tradução de Delfim Leão). Esperam-se ainda novas traduções de Horácio e Ovídio.
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Não sabemos quase nada sobre Álbio Tibulo. Mesmo as informações mais ou menos fidedignas que nos chegaram são resultado de suposições feitas a partir da sua obra, ou de escassas notícias biográficas. Terá talvez nascido em 54 a.C., e é quase seguro que tenha morrido em 19 a.C. — há testemunhos que fazem coincidir o ano da sua morte com o de Virgílio. Seria de família com posses, pertencente à ordem equestre, mas as confiscações que se seguiram às guerras civis terão levado algum do património familiar, como sucedeu a outros poetas, entre os quais Virgílio e Propércio. Talvez Horácio tivesse Tibulo em mente quando escreveu numa epístola (uma vez mais, não é certo): “Álbio, cândido crítico das minhas sátiras,/ pergunto-me o que farás na região do Pedo./ Escreves algo que exceda as obras de Cássio de Parma,/ ou em silêncio passeias pelos salubres bosques,/ pensando no que é digno de um homem sábio e bom? (Epístolas, 1. 4, em tradução, inédita, de Pedro Braga Falcão).
Assim como Horácio fez parte do círculo de Mecenas, Tibulo pertencia à roda do poderoso Valério Messala Corvino, cujas hostes integrou, tendo combatido às suas ordens na Gália. Tibulo refere-o em vários poemas, num dos quais fala mesmo do seu “amigo Messala” (p. 66). O poeta foi contemporâneo da gloriosa geração que incluiu nomes como os de Galo, Virgílio, Horácio (mais velhos do que ele), Propércio e Ovídio (mais novos). Este último, historiando poeticamente os tempos e a sucessão dos poetas elegíacos, escreveu: ? ?Vi, apenas, Virgílio; e a avareza dos fados/ não concedeu a Tibulo tempo para a minha amizade”; e prossegue: “este foi o teu sucessor, ó Galo, e Propércio o dele;/ o quarto nesta cadeia de tempo fui eu” (Tristia, 4.10, em tradução também inédita de Carlos Ascenso André). O mesmo Ovídio viria a lamentar a morte de Tibulo — “arranca os cabelos que tal não merecem, ó chorosa Elegia!/ Ah, por demais verdadeiro é o nome que tens!/ O famoso poeta que trouxe glória ao teu género, Tibulo,/ arde, cadáver inanimado no cimo de uma pira” (Amores, Livros Cotovia, 2006, tradução de Carlos Ascenso André).
É certamente Tibulo o destinatário da ode de Horácio que assim começa: “Álbio, não sofras demasiado ao lembrares-te da indócil/ Glícera, nem recantes plangentes versos de elegia/ perguntando-te, quebrada a confiança que tinhas,/ porque um mais novo te eclipsa…” (Odes, Cotovia, 2008, tradução de Pedro Braga Falcão). Segundo o tradutor, é certo ser a Tibulo que Horácio se dirige, dado que refere a elegia (género em que Tibulo se distinguiu) e que comentadores antigos e modernos confirmam a relação. Nos versos horacianos estão resumidos alguns elementos importantes na poesia de Tibulo: o predomínio de uma figura feminina (factor não eliminatório, porém) cantada em elegias (a elegia romana foi desenvolvimento específico do género, que, de qualquer forma, se distingue razoavelmente da acepção vulgar hoje dada, em exclusivo, ao termo “elegia”), sob a égide do que o poema chamará, alguns versos depois, “cruel divertimento?de Vénus”. O nome aduzido por Horácio constitui um jogo de palavras com o sentido de “doce”, e não é o cognome eleito por Tibulo para as duas mulheres presentes no Livro I e II das elegias. Mulheres, essas, cuja identificação é naturalmente difícil hoje em dia. No primeiro conjunto, a figura feminina é Délia; no segundo, Némesis. Os poemas do Livro I descrevem um quadro não isento de atrito, mas essa tensão eleva-se, no Livro II, a outros níveis — não nos esqueçamos de que o nome Némesis aponta para vingança. Com a primeira, o poeta ainda alimenta fantasias bucólicas — “eu mesmo hei-de plantar, no tempo certo, tenras videiras,/ volvido camponês, e, com mão ágil, árvores de fruta já crescidas” (p. 49) —, num desejo de existência idealizada, espécie de via de modéstia resignada mas venturosa, um tópico que lembra Horácio – e que não passaria, com grande probabilidade, disso mesmo: um tópico. No entanto, em dois poemas consecutivos (5 e 6), relata-se uma história de traição — “Agora desfruta outro do amor” (p. 65); “Délia às escondidas,/ no silêncio da noite, acalenta não sei quem no seu aconchego” (p. 68). O último destes, aliás, começa, no original latino, com a palavra “semper”, que enfatiza a instabilidade do amor, ao propor que o único aspecto permanente na existência é a própria mudança. Quanto a Némesis, “devota da ganância” (p.38), na expressão do tradutor e estudioso Carlos Ascenso André, protagoniza um conjunto de três poemas que são elucubrações quase neuróticas em torno daquela temática. Por esse motivo, em ambos os casos, o tradutor propõe que se trata de um conjunto de relações marcadas por uma profunda e efectiva artificialidade. Fórmulas como “retórica de amor inconsequente”, “devaneio poético”, ou “breve desvario”, com que o estudioso descreve o discurso poético de Tibulo, dão bem a medida da filiação em certa gramática literária, e não parecem ser a expressão poética de um acervo afectivo irreprimível, como sucedia com Catulo cerca de duas gerações antes. Segundo Carlos Ascenso André, situar-se-á noutro pólo a zona da obra de Tibulo que conhece a mais genuína recriação literária do amor enquanto material biográfico a transfigurar pela poesia.
Paralelamente à presença feminina, dividida pelos dois núcleos de poemas de Tibulo, há três composições, no Livro I, que se centram num jovem, Márato. Esta presença é declaradamente distinta — “Só aí se fala em carícias, em beijos, na concretização do amor, para além do mero plano das palavras”. (p. 22). Por outro lado, o seu surgimento não parece ser arbitrário na própria organização dos poemas. Ele é “‘encastrado’ entre as elegias a Délia, a assumir com clareza que não se trata de um facto episódico” (p. 29), conforme afiança o tradutor. E mesmo no contexto da composição isso sucede: desde logo, a primeira ocorrência dá-se no final do poema, “como corolário de toda esta arte de amar que veio sendo enunciada” (p. 30). As suas presenças levam a que Ascenso André proponha tratar-se da “crónica de um amor errático”. Na segunda, Márato partilha o protagonismo do poema com uma amante; na última, trairá o sujeito poético com outro homem. As actividades amorosas, foi o jovem, gananciosamente, “vendê-las (p. 81), como diz o poema. Comparando os três alvos de interesse do sujeito poético, constata-se que existe a uni-los o elemento da perfídia.
Num famoso passo de Institutio Oratoria, escreve Quintiliano: “Rivalizamos também com os Gregos na elegia, onde Tibulo me parece, acima de todos, autor escorreito e elegante; há quem prefira Propércio; Ovídio é mais lascivo que qualquer deles, tal como Galo é mais áspero”. A elegância e a sofisticação estilística de Tibulo são um dos aspectos marcantes da sua poesia. Por vezes, em antecipação de um poeta especialmente cotado nesse particular, como Ovídio, com assonâncias e construções anafóricas de assinalável engenho. Uma atenção tecnicamente atenta à feitura do verso e ao jogo entre sentido e som alia-se ao cuidado extremo posto na orientação vocabular dentro do verso, e entre versos.
Em relação à fixação do conjunto dos poemas do autor, o menos arriscado é considerar apenas os dois primeiros livros do chamado Corpus Tibullianum, uma vez que o terceiro é de atribuição dubitativa. Há mesmo estudiosos que o rejeitam por completo como não tibuliano. Outros há, porém, que o consideram legítimo, com a exclusão das duas elegias de Lígdamo e de três elegias de autoria desconhecida — uma das quais de louvor a Messala. Carlos Ascenso André inscreve-se nessa corrente. O Ciclo de Sulpícia inclui um poema que Ascenso André considera (na esteira de outros latinistas) da autoria de Tibulo, e que, portanto, junta aos poemas dos Livros I e II, bem como as elegias finais do Livro III, que serão, “com toda a probabilidade” (p. 133), suas — “Mulher alguma me tirará o teu leito”. Integra, ainda, no seu próprio corpus, que define enquanto especialista e tradutor, outras quatro em que o eu poético será o de Sulpícia, mas que leva em linha de consideração. Por fim, traduz e inclui as elegias de Sulpícia, “dada a relação estreita que mantêm com as elegias anteriores” (p. 42).


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