O exílio de uma menina morta - por Ana Vilela
Edição Livros Cotovia |
Cornélio Penna transmudou para as páginas de seus livros as experiências
vividas nessas regiões, as histórias dos antepassados e mesmo os objetos
antigos que colecionava. O exemplo mais contundente é o quadro da menina. Tudo
começou quando o escritor ganhou um retrato de presente um retrato, um óleo de
uma menina morta, conforme era o costume em meados do século XIX, quando muitas
crianças morriam precocemente. Era uma tia-bisavó do autor, com semblante
angelical. A criança, acredita-se, tinha por volta de seis anos. E a tela tornou-se
vital para o romancista. A menina era sua noiva, dizia ele a amigos como Rachel
de Queiroz e Augusto Frederico Schmidt, alguns dos quais levou para contemplar
a presença que ornava a parede de sua casa. Em entrevista a O Jornal,
do Rio de Janeiro, conta o autor que um dia, ao escrever um capítulo de Repouso,
tinha perto de si o quadro. Ao final, quando reuniu todos os capítulos, esse se
destacou. Penna o excluiu e guardou, decidindo, nesse instante, a escrever A
menina morta. Assim o fez, traduzindo a tela em palavra, tanto na presença
da criança - "coberta pelo vestido de brocado branco, de grandes ramagens
de prata onde brilhavam os tons azulados e cinzentos, coroado de pequeninas
rosas de toucar, feitas de penas levemente rosadas e postas sobre seus cabelos
curtos, cortados rente da cabeça" - quanto no quadro, que ganha as paredes
da casa-grande onde se passa a história.
Penna eleva a menina à condição de mito, tanto na vida real quanto na escrita.
O livro nada traz dos dados biográficos da criança, nem o nome, nem o que a
levou à morte, nem a idade. Ao mesmo tempo sabe-se muito dela: o doce
preferido, o apreço por flores, pelo jardim, os hábitos, a fisionomia, o amor
pelos escravizados. Pode-se visualizá-la, porque descrita exatamente como no
quadro-fotografia que o levou a desenhar o livro. Quanto mais a aura de
mistério e a rememoração por parte dos personagens aumenta, mais a figura da
menina e sua presença ausente vai se fixando. Ao final tem-se sua imagem
impregnada na memória, tanto na do leitor quanto na dos personagens.
Toda a trama se passa durante os últimos tempos da escravidão no Brasil e tem
como cenário a fazenda do Grotão, próxima a Porto Novo, no Vale do Paraíba,
região onde o escritor viveu parte da infância. Dali levou memórias das fazendas
e das histórias ouvidas por lá, inclusive sobre a própria menina morta, sua
bondade com os escravos, sua leveza e doçura. Segundo o escritor Augusto
Frederico Schmidt, "não se terá escrito sobre a escravidão no Brasil, até
hoje, nada mais impressionante do que alguns dos capítulos de A menina
morta" (1958). Mas o tema não é o centro da obra. Pelo contrário, o
foco é o social e o humano. O texto adentra o ser, suas fugas, angústias,
memórias, solidão. O exílio de cada um, seja branco, seja preto.
Há controvérsias sobre o estilo do livro: realismo, romance histórico,
psicologismo ou mistura de gêneros? Há quem o considere gótico. Outros, que se
aproxima do realismo fantástico. Colocam Penna ao lado dos escritores ligados à intelligentsiacatólica,
a exemplo de Lúcio Cardoso, de Crônica da casa assassinada. O
certo é que a obra é distinta entre a literatura produzida no Brasil até os
dias de hoje. Altamente ligado ao catolicismo, Penna realmente era. Mas a obra,
apesar da presença religiosa, até mesmo pela época, não é apologética. Tanto
que Penna cria um anjo-gente que, no décimo segundo capítulo, sobe aos céus,
concluindo na terra a sua passagem. A cena encerra um ciclo, elevando a menina
à condição de mito incapaz de mudar a vida das pessoas, a sua realidade social.
É mais como uma máscara que encobre até certo ponto a verdade de cada um. A
partir de sua ascensão, as transformações no Grotão seguem em cadeia. A menina
sai de cena enquanto humana e retorna enquanto presença ausente. Terminado o
enterro todos voltam à aparente normalidade da fazenda, mas em pouco tempo
percebe-se que isso é impossível e a mudança, inevitável.
A morte é constante fio condutor do romance, principalmente o fim simbólico,
marcado tanto pela loucura quanto pelo silêncio e pela dependência das
personagens agregadas, todas mulheres vivendo de favores, assim como pela
degradação da fazenda e do sistema vigente, a escravidão e o patriarcalismo. A
paralisia das cenas desenhadas pelo escritor-pintor Cornélio Penna são tempo de
morte. A própria casa sombria, com seus móveis e cortinas pesados, é espaço de
morte.
Nesse contexto a menina morta é um bálsamo, a mais viva entre todos os
moradores do Grotão. Todos se apegam a ela. O sofrimento por sua perda é
imenso. Escravizados, empregados da casa-grande, familiares e padres sofrem em
demasia com a sua morte. Quando a menina se vai, os véus caem. A criança parece
o único e último esteio. São mais de 500 páginas de mistério crescente, em que
o autor joga com sons estranhos e aparições, com instantes em que o próprio
leitor espera ver a menina a sorrir e a puxar a saia de alguém. Nas entrelinhas
ficam os jogos sem respostas, as insinuações e reticências inúmeras deixadas
como rastros...
A história ganha ainda mais peso e força com a chegada da irmã da menina,
Carlota, que vem da Corte para ocupar o lugar que seria da morta. A personagem
segue até o final do livro, protagonizado apenas por mulheres: a menina morta,
Carlota, Dadade, que representa o bobo da corte, Mariana, a mãe das duas jovens,
e a prima Celestina são as imagens mais fortes. Mesmo que não sejam as mais
presentes no romance, são as condutoras da trama.
Infelizmente, Cornélio Penna e toda a sua obra vivem no limbo literário
brasileiro. Raras são as pessoas que já ouviram falar dele, mais raros ainda
aqueles que já o leram. Qualquer livro seu, somente em sebos. Alguns, como Cornélio
Penna - Romances Completos, de 1958, da editora José Aguilar, só por preços
bem salgados, e com muita sorte. O autor escreveu apenas quatro
obras: A menina morta, última criação, Fronteira, Dois
romances de Nico Horta e Repouso, deixando, ao
morrer, fragmentos de Alma branca. Fronteira foi
adaptado para o cinema pelo diretor Rafael Conde. Todo o espólio de Penna,
inclusive o quadro da menina morta, encontra-se na Fundação Casa de Rui
Barbosa, no Rio de Janeiro. Lá estão também as gravuras e as pinturas do
escritor, além de algumas caricaturas feitas para jornais quando ainda atuava
como jornalista. O autor abandonou a pintura em 1929, por considerar que fazia
literatura com a pintura, a qual, para ele, era incapaz de abarcar tudo o que a
escrita poderia.
Cornélio Penna era considerado um artista estranho, alguém "desembarcado
por engano neste planeta", segundo escreveu Murilo Mendes. Um exilado em
seu tempo, cercando-se de antiguidades e sempre indo a um passado mais distante
quando o assunto era literatura. Na ocasião do lançamento de Dois
romances de Nico Horta, em 1940, Mário de Andrade publica artigo no Diário
de Notícias, no Rio de Janeiro, intitulando as obras do autor publicadas
até então de "Romances de um antiquário". Formado em
Direito (profissão de gaveta), jornalista, pintor, escritor, Cornélio Penna é
considerado o primeiro romancista brasileiro a adentrar as angústias dos
personagens, a invadir "a problemática do ser", segundo Adonias
Filho. Estranho, hermético, sem gosto pela movimentação e pelas vaidades do
mundo literário, Cornélio Penna, morto em 1958, realmente tornou-se um exilado
em seu tempo e em todos os outros. Quem perde é o leitor brasileiro.
*Ana Vilela é jornalista e mestre em
Literatura pela UnB.
(originalmente publicado no Blog do IMS)
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