Uma leitura de Songlines de Bruce Chatwin

                                                                        Bruce Chatwin
                                

                                                                      Em memória de Ruy Duarte de Carvalho
                                                                              que um dia quis viajar pela Austrália


Apóstrofe às origens da humanidade? (Origens nómadas, migratórias, irreconciliáveis com a territorialização ou sedentarização que as cidades terão consentido.) Exercício de estilo em que os géneros se confundem e hibridizam? (Mito e memória, etnografia, narrativa de viagens, diário, aforismo, fragmento.) Síntese de uma particular perspectiva do mundo moderno em que este é de forma mais ou menos explícita demonizado? Tudo isto e muito mais, assim é Songlines!
Bruce Chatwin, como em nenhum dos seus livros anteriores, convoca neste uma forma de escrita que simula a desterritorialização e a disseminação dos mundos por si descritos e do projecto literário (e existencial) que os descreve. Aquele que se desloca, faz deslocar a escrita, mostrá-la como móvel, fluida, capaz de capturar, mas de captura improvável, instável, nómada. É neste projecto de deslocamento que emerge uma determinada imagem de um mundo aborígene australiano que tem por eixo os «trilhos (linhas) do canto» ou, a usar o impressivo título da edição portuguesa, o «canto nómada». Do que se trata afinal?
O livro tem um dos seus eixos numa determinada concepção do território (uma concepção desterritorializada) aborígene. Seguindo Chatwin, a Austrália assemelhar-se-ia a um imenso «labirinto de caminhos invisíveis», aquilo a que os europeus  designaram por «trilhos do Sonho» ou «Dreaming-tracks» ou, ainda, «Songlines», ou, de acordo com a versão aborígene (ou a tradução que dela temos), «Pegadas dos Antepassados» ou «via da Lei». O território australiano seria, nesse sentido, um território sagrado. Espaços que se percorrem, que se re-actualizam constantemente, e que, para Chatwin, escritor volante, cuja concepção de escrita se prende com o deslocamento (do pensamento, da mão sobre a página, do corpo que se desloca numa superfície, página, pele, geo-grafia), se afirmam como espaços emblemáticos da sua (dele, Chatwin) presença nomeável. Os aborígenes são descritos em Songlines como grupos que sustentam a sua visão do mundo – como se existisse uma visão do mundo aqui em jogo – numa forma de «passeio» ou Walkabout cujo significado não se compraz com quaisquer formas de territorialização conhecidas pelos ocidentais.
Seguindo Chatwin, a geografia é aqui sagrada, sendo que uma «earthbound philosophy» parece permear o corpo desse gigantesco território que é a Austrália. Num diálogo com o seu cicerone e amigo Arkady, um etnógrafo e activista russo que se dedicava a mapear os territórios aborígenes, é-nos dito que a terra, sendo sagrada, deverá permanecer intocada, tal como fora criada, i.e, cantada, pelos Antepassados no «tempo do Sonho» ou «Dreamtime». O canto é, de acordo com Chatwin, sinónimo de criação. Perante as observações de Arkady em torno disto, Bruce acrescenta: «Rilke [...] teve uma intuição semelhante. Também dizia que o canto era existência», ao que Arkady remata «Eu sei [...] “O Terceiro Soneto a Orfeu”». (Bruce Chatwin, O canto nómada, Lisboa, Quetzal, p. 21). O soneto de Rilke é revelador pois mostra-nos a densidade ontológica que, para Chatwin, se faz inscrever nos trilhos do canto australianos. «Cantar é ser», como nos diz Rilke. «Gesang ist Dasein». Tal como os mitos aborígenes de Criação falam de seres totémicos lendários que terão percorrido o continente no tempo do Sonho cantando o nome de tudo o que lhes surgia no caminho, e conferindo existência a esse território cantado, percorrer os trilhos do Sonho deverá ser encarado como uma re-criação ou revisitação desse tempo original. Arkady, uma espécie de Virgílio improvável, transporta Bruce, e com ele cada um de nós, para um mundo onde cantar não é somente um modo de regresso e revisitação ritual a uma origem, mas também um mapa ou vector. E, aí, o tempo converte-se em espaço. Bruce interroga então Arkady: «Ao dizer episódio – perguntei – refere-se a “sítio sagrado”? Ao que Arkady responde: «Exactamente». (id., p. 24). Dir-se-ia que esta conversão de um tempo sagrado numa paisagem sagrada é, segundo Chatwin, um dos aspectos mais importantes da visão do mundo aborígene. Uma parte considerável da tragédia da territorialização forçada procede de uma incompreensão de fundo deste tipo de processo em que o tempo se converte em espaço e em que esta conversão depende de uma viagem: a viagem do canto emblematizada por aquele que canta. Fazer o mundo e fazer o mundo de novo, eis o que está aqui em causa.
Uma espacialização do tempo sagrado é assim mediada pelo canto. Singing the world into existence. Para os aborígenes o mundo reactualiza-se através do movimento e do canto, sendo estes modalidades de uma cartografia de geometria variável, eminentemente criativa, disponível para o que há de virtualmente infinito e desterritorializável. O «ruído» será, afinal, uma das acepções plenas dessa abertura. E os trilhos uma criação sempre renovada de imprevisíveis vozes que se deslocam.

Luís Quintais

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