Trecho de "A chave de casa"


Primeiro o pão ázimo, seco, sem gosto, que é para lembrar o sofrimento do povo expulso vagando pelo deserto. Depois, a maçã com mel, que é para não passar a fome, não viver na miséria, para ter um ano doce. Estou cansada de mastigar farinha com água. Não somos muitos e volta da mesa, talvez sete. O pão circula, e cada um pega um pedaço, enquanto repete: el pan de la afriisyon ke komyeram nuestros padres em tyeras de Ayifto. Em seguida, a maçã: Shanah Tova. Não havia nada de religioso no ritual. Para mim, faltava sempre alguma coisa. Faltava verdade. Tudo não passava de uma grande encenação: éramos judeus um dia por ano. Festejávamos o ano novo, mas para nós o ano só começava no dia primeiro de Janeiro. O ano nunca começou em Setembro ou outubro. Então, por que a celebração? Por que esse teatro para nós mesmos? [Não entendo por que dizer que não havia verdade. Deus não estava na mesa, concordo, foi a nossa escolha. Não era a religião que nos importava, mas a tradição. Não queríamos simplesmente jogar na lata de lixo aquilo que os nossos antepassados se esforçaram para guardar. O importante era manter a simbologia. Eu queria transmitir um pouquinho do que aprendi para os que vieram depois.] Eu sei. Entendo seu gesto, sua intenção. Romper definitivamente com o passado é mais difícil do que imaginamos, gera culpa, uma culpa que pode se tornar mortal. Penso que é por isso que somos judeus mesmo quando não o somos.


Trecho de A Chave de casa, de Tatiana Salem Levy

A chave de casa é um dos títulos que vai ser lido pela actriz Andresa Soares durante “Uma tarde judaica” amanhã, dia 12 de Março 2011 no Clube Ferroviário em Lisboa. 

Mais informações sobre o evento encontrará no site da editora: www.livroscotovia.pt

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