Mata-Borrão



Anjinho


Fotografias, só a dos pais. Tirada antes de ele ir para França. Diziam que era longe. Mas a ela, França lembrava-lhe o nome Francelina, a filha dos da venda, sempre a fazer queixas à Professora e a rir baixinho por baixo do barulho das reguadas.
Queria lembrar-se do pai lá nessa terra, mas só isso lhe vinha à cabeça. Depois punha-se a olhar para ele, emoldurado ao pé da mãe, rente ao tecto, ao lado de um quadro com o coração a sair do corpo de Jesus.
Logo, em se fazendo noite, havia de ser anjo. Ou não fosse a madrinha ter-lhe comprado na cidade aquela lindeza. Já ia para um mês que o seu gosto era ficar ao pé da arca. Por querer abri-la já lhe valera a palma da mão, num repente maternal. Lá dentro, embrulhada numa manta, a terrina pintada com flores, rosas grandes e rosas pequeninas. Ganharam-na os pais, numa feira, e nunca se podia partir, por isso vivia ali, resguardada, ao pé de um cobertor muito macio com um bicho desenhado. Um bicho que parecia um gato, mas não era bem um gato. Nos invernos gelados vinha-lhe à ideia esse cobertor, mas melhor assim. Ia lá dormir com aquilo. E cá em cima, rente à tampa, duas asas feitas de espuma, açúcar, rendas e penas.
Todo o dia sentiu a trança muito apertada, mas a mãe tinha-lhe dito que assim era preciso para fazer ondas no cabelo, costas abaixo, como as colchas nas paredes, em dias como aquele, de procissão.
O pai da Francelina vendeu-lhes uns metros de pano branco. A mãe, com a cara das coisas sérias, os olhos colados ao metro de madeira, enquanto o pano se libertava. Havia de ser o vestido. Ai.
Sendo promessa, nunca mais pensou nos sapatinhos brancos que uma vez vira na montra do calçado Estrela, lá longe, na vila. E se descalça andava sempre, que lhe importavam.
À primeira badalada, depois da mãe lhe ter lavado, mais uma vez, o rosto, seguiu para a igreja. Foi já na sacristia que a vestiram.
A banda abafa o cortejo de tosses, o sussurro da Salvé Rainha, Mãe Misericordiosa, vida doçura, esperança a nossa, nós os degredados filhos de Eva, gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Dos corpos cobertos por xailes negros espreitam terços, velas, meninos de colo à procura de leite. O ar carrega-se de cera.
São os pés dos homens que carregam o andor do S. Sebastião que marcam o ritmo. Se eles param, ela pára também, os passos miudinhos. Tão perto, aquele corpo cravejado de setas como as que os namorados desenham nas árvores. Dava muito dó.
Às vezes, precisa correr para acompanhar a passada mais rápida do Senhor Prior que arrasta todas as outras.
As asas pesam-lhe e sente medo. Calhando, já não dorme hoje em casa, que o lugar dos anjinhos é no céu. Aflita, procura a mãe com o olhar e não a vê. À sua volta, a aldeia não parece a mesma, não é a sua.
A fonte, que é da fonte? O castanheiro grande? A ribeira com caixas de madeira onde as mulheres se ajoelham para lavar a roupa? A Francelina a dizer bem-feita, bem-feita, bem-feita, que foste tu. E o adro? Sempre tão varrido, tão liso.
Acordou nos braços do sacristão que lhe cobriu o corpo com a opa vermelha.

Um gesto certo, aquele. Quase lei, decreto de alma. Quando se encontra um anjo no chão, há que pegar-lhe, cobri-lo de seda rubra, para que perca o medo e volte a voar.


Maria João Forte é socióloga

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