Invisível
2
Agora que vocês já a conhecem, não é nenhuma surpresa que quando
ela cortou a primeira fatia do bolo do seu aniversário de sete anos, com a faca
de baixo para cima e, sem contar pra ninguém, desejou ficar invisível, não é
nenhuma surpresa que seu desejo tenha se realizado. Não foi imediato; tiveram
que esperar até a manhã seguinte, quando a Sofia acordou e todos tinham feito
seus tai chis e não a encontraram em lugar algum nem mesmo quando procuraram de
ponta cabeça. Finalmente ela estava invisível e órfã e livre, como todas as
crianças sempre quiseram ser.
E sua mãe dizia SOFIA,
sua mãe dizia SOFIAZINHA, sua mãe dizia SOZINHA, sua mãe dizia me dá um S, me
dá um O, me dá um F, me dá um I, me dá um A, SoooooOOOOFIA, CADÊ SOFIA! Me dá
mil pontos de exclamação! mas a Sofia não precisava mais ouvir, porque já tinha
decidido que se a luz não rebatia sobre ela o som também não precisava, quando
não fosse conveniente.
Naquela casa moravam
também duas gatas e uma dúzia de peixes num aquário e um cachorro, e eles todos
ficaram um pouco mais felizes porque compreenderam que ela tinha passado para o
lado deles. Agora que ela era invisível, era também em parte secreta, como são secretas
as vidas dos animais dentro de uma casa de humanos.
Mas estou me
adiantando, porque apesar de eu saber disso e vocês saberem disso, a Sofia
ainda não sabia. Ela acordou e a manhã correu como de costume: saiu do quarto e
percebeu que todo mundo estava desesperado, não se interessou em descobrir por
quê, voltou para o quarto e sentou na beira da cama.
— Todos estão mesmo
sempre desesperados, não é hoje que eu vou no desespero dos outros — ela disse
em voz alta, talvez porque soubesse que nós estávamos ouvindo.
O aquário de peixes
dourados ficava na frente da sua cama. Ela dormia toda noite com o barulho do
motor ligado e aquela luz fria acesa, e sentia-se em alto mar. Deslizou até o
chão porque sempre que possível se movia com preguiça, e foi conversar com os
peixes.
No aquário tinha uma
sereia de plástico sentada numa pedra de plástico, usando óculos escuros. A
Sofia passava horas olhando para ela. Um dia venceu segundo lugar num concurso
da escola (tédio) com um desenho que fez da sereia, acompanhada de peixes azuis
de rosto redondo feitos cada um só com uma linha de canetinha: primeiro ela desenhava
o rosto, meia circunferência aberta para o lado, depois estendia o traço da
circunferência em um dos lados, deixando o peixe mais comprido do que redondo,
delineando metade de seu corpo, até formar um triângulo que servisse de rabo. E aí a linha voltava pelo lado contrário,
completando o outro lado do corpo do peixe, unindo-o ao rosto. E então o peixe
ganhava meio sorriso e um só olho, porque ficava simpático assim, de perfil.
Dentro do aquário, um
peixe dourado veio nadando até o vidro, bem perto de onde a Sofia tinha colado
o rosto que, do ponto de vista dele, parecia enorme. O peixe olhou de frente e
começou a rir. A princípio a Sofia achou aquilo estranho, um peixe rindo, mas
depois pensou de novo e decidiu que não importava se era estranho ou não,
porque era ofensivo aquilo, ser rida por um peixe. O peixe nadou até a
superfície, inclinou a cabeça para cima e riu de novo, desta vez fazendo bolhas
na água. A Sofia afastou o rosto do vidro, com nojo.
— Vol-vol-vol-ta —
disse o peixe, que tinha um pouco de ar e e um pouco de água no meio de sua
palavra.
— Por que você está
rindo da minha cara?
— Você já viu um peixe
rindo antes? Como sabe que é isso que estou fazendo?
— Eu nunca vi um peixe
falando antes, e a gente agora está aqui conversando, o que significa que eu de
repente entendo você mesmo sem saber como, e mesmo sem saber como, sei que você
estava rindo de mim.
— Você entende mais do
que sabe que entende, você pensa e não pensa e, no entanto, você é cogito
ergo sum — disse o peixe, que agora parecia usar óculos.
— Cogito ergo sum,
esse não é meu nome.
— Não.
— Você sabe qual é meu
nome?
— Sofia — disse o
peixe. — Sofia em antigo grego humano significa “sabedoria”, cogito ergo sum
em latim humano significa sei lá o quê. Já eu me chamo Só-sei-que-nada-sei,
você está me acompanhando?
— Sei lá?
—Vamos voltar ao
assunto principal.
— Qual é o assunto
principal, senhor Sei-lá-que-nada?
— Pode me chamar de
senhor Nada. É mais curto, e nós peixes gostamos de nomes curtos, com exceção
dos salmões, que têm nomes como Querido Quinino Quilate, Diamante dos Dentes de
Ouro, Panela de Aço Inoxidável.
— O senhor pode me
dizer qual é o assunto principal, senhor Nada?
O senhor Nada mergulhou
até o fundo do aquário, respirando água, e olhou para o alto. Os outros peixes
faziam silêncio em respeito a ele, quase parados atrás da sereia de plástico.
Sabiam identificar uma situação solene. O senhor Nada ficou um tempo olhando os
flocos de ração que boiavam na superfície. Amarelos, vermelhos, verdes, todos
translúcidos e leves o suficiente para não afundar. A pequena Sofia olhava o
senhor Nada que olhava para a luz que atravessava os flocos coloridos. A hora
de ir para a escola já tinha passado e ela ainda estava lá. Pela primeira vez
percebia que as barbatanas do senhor Nada tinham a mesma transparência que os
flocos de ração, só que eram de um laranja vibrante, como se além de deixar a
luz passar, elas emitissem também um pouco de luz própria. A Sofia se perguntou
por um instante se os peixes eram um pouco transparentes de tanto comer comida
transparente, e seu cérebro estava prestes a se perguntar qual seria o paralelo
disso para os seres humanos, se eles são opacos porque comem pão, opãocos, mas
antes que a pergunta fosse formulada, o senhor Nada a interrompeu:
— Você passa muitas
horas do dia sem saber o que fazer, não é?
Sofia Nestrovski nasceu em São Paulo, em 1991. Cresceu no meio do milharal dos Estados Unidos, voltou para São Paulo mais tarde. Faz mestrado sobre o poeta William Wordsworth na Universidade de São Paulo, dá cursos sobre Shakespeare, assina uma seção semanal sobre palavras no jornal Nexo, escreve resenhas para a revista Quatro cinco um. Também luta Kung Fu, mas não muito.
O que é que se passa com o site?
ReplyDeleteObrigado
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