Aborrecimento, quase poesia
Depois, o ar
fresco. Espécie de enlevo ao atravessar o estacionamento, malgrado o peso das
sacolas, ganhar a calçada, iniciar a caminhada de quatro quarteirões, não mais,
e todos nivelados.
Morosidade da fila.
A vertigem que nos metem as velocíssimas mãos dos caixas. O costumeiro
atrapalho à hora de ensacar, tanto mais humilhante quanto inevitável.
Em seguida, cruzar
uma pequena passagem da noite, baixa ainda, justo o pedaço onde se acha o Hotel Duomo.
Há, no mundo,
coisas feitas para a anonímia – o Hotel Duomo é certamente uma delas. A
construção datará talvez de fins dos anos 1980. Ideada – como a grande maioria
dos edifícios desta cidade – para não desvairar dos arredores, com vistas a uma
perfeita integração. Sem capricho – sem propriamente um estilo –, trata-se
antes de mais de uma excrescência do espírito do tempo, de um certo tempo. O
fato de que não aparenta ter sido reformada em nenhum momento desde então é o
que acaba lhe emprestando, passados quase vinte anos, certa autonomia com
relação aos demais prédios da rua.
Eis a fachada, toda
em vidro fumê. Quanto a isto, quanto a esta palavra, “fumê”, não podemos fazer
nada. Ei-las, impunes, a palavra e a fachada do Hotel Duomo.
Separam-na do
rés-do-chão algumas polegadas de mármore cinzento. Deste mesmo mármore de
aspecto triste e algo encardido, os três degraus que dão para as portas do saguão,
sempre abertas.
Um relance
descobre no interior do saguão o inevitável conjunto de poltronas de estofado
bege, semelhando couro, e mesinhas encimadas por vasos de vidro com
copos-de-leite artificiais; o deslustrado balcão de recepção, atrás do qual as
pequenas autoridades do hotel tratam de seus afazeres; funcionários de uniforme
– mortos já, talvez –, alguns deles transportando de um extremo a outro da peça
carrinhos de bagagem vazios.
Conexo ao saguão
tem-se, no entanto, o piano bar do
Hotel, diante do qual me detenho às vezes por alguns instantes ao voltar do supermercado.
Geralmente, nesta
altura da noite as luzes do bar já estão acesas. Pode-se, da calçada, ter uma
vista razoável do interior. Dentro, o governo incontestado de tons terrosos e
amadeirados. Iluminação quente e suave, contrastando fortemente – irrealmente –
com as luzes brancas do saguão. Prateleiras e prateleiras de garrafas de vidro
contendo líquidos de cores as mais diversas, ainda que emudecidas, presas numa espécie de âmbar devido à
iluminação pardacenta e ao fosco da vidraça.
Por vezes, vemos
um barman. Esguio e uniformizado, como se esperaria, em perfeita consonância
com o que vai de redor, enxagua copos com o olhar voltado talvez para o
exterior da peça, para a vidraça, para as figuras que passam pela calçada. Este
olhar ausentado, por vezes me fixo nele, deixo-me apreender, mas não é sempre.
Não é sempre que o barman do piano bar do
Hotel Duomo se encontra em seu lugar.
Já o pianista, o
pianista do piano bar do Hotel Duomo,
este nunca abandona o seu posto.
Há dois anos,
desde que me mudei para cá, faço este trajeto do supermercado até o edifício
onde vivo, e nunca vi seu piano desassistido. O canto que ocupa é bem próximo
da vidraça. Uma espécie de nicho construído precisamente para isto, amoldado às
dimensões do piano. Também o nicho é de vidro fosco. Através dele, é possível
que o pianista enxergue os hóspedes que entram e saem, o arrastado vai-e-vem
dos funcionários de quepe, os microacontecimentos nos lábios dos
recepcionistas.
Mas ele não vê o que se passa lá fora. Pelo
menos não enquanto toca. A menos que tenha olhos na nuca. Está sempre de costas
para a rua, para a calçada – de costas e um pouco de lado. Vejo sempre uma
sugestão de rosto. Mas de seu olhar, acerca de seu olhar, tenho apenas conjecturas.
O que vejo ao
passar pela fachada do Hotel Duomo são as costas de um homem já entrado em
anos, levemente curvado sobre as teclas de um piano, as quais vai dedilhando
sem nenhum esforço ou emoção aparente. Aquele âmbar estará então cheio de
música, uma música que devo imaginar, que devo preencher, ao passar, por minha
própria conta. Esta operação de preenchimento me é sempre agradável.
Como se o peso das
sacolas do supermercado começasse a se fazer sentir, paro por alguns instantes,
alongo um pouco o pescoço, sempre na tentativa de vê-lo melhor, captá-lo mais
inteiro. Revejo então a calva ordeira, penteada, cercada por uns poucos e discretos
fios brancos. As mãos, projetadas da mesma jaqueta acolchoada de tecido
sintético, são enrugadas. A jaqueta é creme, é eterna. As mãos, penso que a
música as enrugou. Não apenas a idade. Também a música.
A música, também
ela anônima, barata, deliciosa. Escolho um repertório inteiramente composto de
standards óbvios, “êxitos imorredouros”. Música arquitetada apenas para dizer –
redizer, redundar – “âmbar”, “fumê”. Baixos copos de uísque, acrílico, bico de
jaca. Pequenas cumbucas de madeira sobre o balcão cheias de amendoins e nozes
murchas, trocados talvez de três em três dias. Uma poeira narcotizante sobre
tudo.
Terá sido ela, a
música, a maior responsável pelas manchas. Terá sido ela a responsável por
estas veias saltadas. A música como alavanca, como um intricado instrumento de
tortura dos idos medievais. A música como calço. A música que empurra as veias
para bem junto da pele, fazendo, eventualmente, com que a ultrapassem.
Ninguém as vê.
Ninguém as ouve. É esta a conclusão que se impõe, já que lá dentro nunca há nenhum
cliente, nenhum hóspede. O próprio barman, como já disse, visibiliza-se apenas
de raro em raro. É concebível que as pessoas no saguão ouçam qualquer coisa, recolham
displicentemente uma linha melódica familiar, acalentadora. Mas trata-se
sobretudo de uma música vizinha, parte da mobília, como o queria o Satie.
Comovente, inútil, imparável. Ainda que ninguém o ouça, que ninguém o ouça com
atenção, que ninguém o ouça com presença,
seus dedos moídos de muzak são
uma chuva de dias. Podem parar a qualquer momento, bem como um rochedo pode vir
abaixo a qualquer momento, sem aviso. Mas podem durar indefinidamente. É mais
provável que durem indefinidamente.
Penso
que continuarão indefinidamente.
Mas penso também, às
vezes, à medida que vou me aproximando da fachada do Hotel Duomo carregado de
sacolas de supermercado, em como reagiria se um dia não o encontrasse lá
dentro, em seu posto costumeiro, tocando o seu silêncio, seu número de
silêncio, e sou tomado então por uma espécie de pânico, uma glaciação na
espinha.
Entro no saguão,
as sacolas prestes a rasgar, pergunto por ele. Ninguém compreende nada. Espalmo
as mãos suadas sobre o balcão da recepção, tentando acordar o funcionário,
tentando trazê-lo de volta à vida.
Mas
não é esta a fantasia mais habitual. Há uma outra, muito mais regular, que
sempre me toma quando passo pela fachada do Hotel Duomo. Nesta fantasia, entro
no saguão do hotel, mas meu porte é imperioso. Caminho com elegância até o
balcão e entrego as sacolas de supermercado ao recepcionista, que me sorri com
gentileza. Em seguida, adentro o piano
bar. Avanço pelo âmbar onde ele acaba de terminar La Barca. Aproximo-me do piano, inclino-me suavemente, trocamos
olhares de perfeito entendimento. Já fizemos isto antes. Muitas vezes, até.
Devidamente hasteado, um pequeno e antiquado microfone espera o vocalista sobre
um pequeno estrado. Acerco-me. Começa.
You must remember this.. a kiss is still a kiss.. a sigh
is just a sigh.
E a meio da
canção, enquanto o pianista improvisa, o barman caminha silenciosamente até o
estrado que ocupo para me entregar um copo de uísque com gelo e soda.
Nesta fantasia,
vê-se, ainda tenho voz. Não a dissipei. Consegui conservá-la de algum modo,
apesar da passagem dos anos. Tenho uma voz vigorosa, direta, mas sobretudo possível. Grave, acariciante, vivida. Uma
voz que não se encolhe diante das notas, que não procura atingi-las por
debaixo, mas que se mede com elas, que caminha por todo o terreno da melodia
sem exaurir-se. Tenho uma voz que se encadeia como que perfeitamente ao piano,
um piano que se encadeia como que perfeitamente ao pianista, um pianista que se
encadeia como que perfeitamente à ideia que faço do pianista do piano bar do
Hotel Duomo.
Tomo o copo nas
mãos. Sorrio para o barman, assentindo com a cabeça longamente, vagarosamente,
no ritmo proposto, pois tudo – tudo – faz parte agora deste acordo tácito e
maravilhoso entre os corpos e as coisas, entre música e ambiente, entre voz e
canção.
As coisas, pela
primeira vez, unificaram-se.
Nesta fantasia,
vê-se, ainda não me proibiram de beber.
Ismar Tirelli Neto é poeta, ficcionista, roteirista e tradutor. Nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Vive e trabalha atualmente em Curitiba. Lançou os seguintes livros: synchronoscopio, Ramerrão e Os Ilhados.
Comments
Post a Comment