Mata-Borrão


Nossa Senhora

Andava eu, basalto fora, a boca a saber a lapas. A vida a deixar-se pensar, um abuso quando ela começa nisto. Pensa-me, pensa-me. Submissa ou prepotente. Abana o rabo, rosna, pede festas. Um cão, a vida. E ali, como não lhe dar atenção, no berço de cedro, dossel de cinzas, lençol de enxofre bordado a hortências, pétala a pétala, já cansada, a névoa bordadeira.

Baleias a respirar como quem cospe e eu a fazer-me desentendida. Penduro a vida no ramo de um dragoeiro. Fica aí, espera pelas naus. Vais ver que gostas do cheiro a canela. Qual. Conjuga o verbo biografar em todos os tempos e se há tempo para isso, é ali. O sol cru a aquecer a memória, a enxugar o sal aos olhos. E deste céu primordial cai uma chuva grossa, mitológica, sem vento, sem frio, sem aviso. Páro, não há lugar de abrigo. A lava é uma artista do mais contemporâneo. Quis lá saber das simetrias, brincou a escorregar. Lá em baixo, muito antes do mar que dali não se vê nem se escuta, vi a Nossa Senhora. Devia estar num pingo, como eu. Os cabelos esvoaçantes porque corria desalmadamente, deixando o manto azul esvoaçar também. A Senhora, neste preparo, nada tinha de sereníssima. Fui ao seu encontro. A vida entretanto, ficou expectante. Onde é que esta vai. Deixou de pensar em mim.
Profundo, é verdade, mas breve, o mistério.

Quando, por certo cansada, começa a subir o vale, começa também a ver-se o andor, os ombros de quem o transporta, depois a banda filarmónica e, por fim, os fiéis. A chuva parou, outra vez sem aviso. Não quis levar a vida com ela. Era uma procissão de uma freguesia. Do lugar onde eu estava, pareceu-me uma aparição.  


Maria João Forte é socióloga

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