Uma Coisa, de José Maria Vieira Mendes

NOVA EDIÇÃO COTOVIA

«PAI: O campo. Cheirem-me lá este ar. Isto sim é ar puro. Aqui pode-se refletir. Tudo mais lento. Abre-me logo o apetite. O que é que se passa contigo?
MÃE: Comigo?
PAI: Estás a tremer. Essas mãos...
MÃE: Não sei. Acho que é a terra por baixo dos meus pés.
PAI: A terra? Qual terra? Não treme nada.
MÃE: Será que sou eu?
PAI: Estás-me a ver a tremer? Estás a ver mais alguém aqui a tremer?
FILHO (em cima de um cavalo, com capacete e armadura de D. Quixote): “Ditosa era e século ditoso aquele em que virão à luz as minhas famosas façanhas, dignas de entalhar em bronze, de esculpir em mármores e pintar em telas para lembrar o futuro. Ó tu, sábio encantador, quem quer que sejas, a quem há de tocar ser cronista desta história peregrina! Rogo-te que não te esqueças do meu bom Rocinante, meu companheiro eterno em todos os meus caminhos e estradas.” Onde é que o sol se põe? É para lá que vamos. Um campo oscilante com o vento a dar. Acordar de manhã e sentir a erva gelada por baixo das botas, ir buscar ovos à capoeira, alimentar a porca, pôr as cabras a pastar. É disso que preciso. Sai-me fogo pela boca.
PAI: Onde é que tu pensas que vais?
FILHO: Queimo quando falo, os meus dentes são labaredas. Aproximamo-nos do acontecimento, do trovão, e a pergunta que importa é: quem vai ficar para contar?
PAI: Contar o quê?
FILHO: As façanhas de Ulisses, as aventuras de D. Quixote, as minhas desgraças e desarticulação. Sou torto, não sei escrever e não estou disposto a aprender. Mas mereço a posteridade.
MÃE: Coitadinho, a adolescência é cruel.
FILHO: “É lógico que o ilógico contradiga a lógica.” Corneille, prefácio de Surena. E a seguir digo: “imagina que não há amanhã, que a vida é hoje e que hoje não existe”. E agora vou dormir.
MÃE: Meu querido filho. Estás tão perdido e confuso. Fausto. Fausto!
PAI: Não me chamo Fausto, chamo-me Polónio.
MÃE: Para onde foram os nossos filhos, Polónio?
PAI: Foram só ali aos arbustos.
MÃE: O que é que eles foram fazer aos arbustos?
PAI: Sei lá.
MÃE: Que futuro é o deles? O que vai ser deles?
PAI: Relaxa, já vêm.
MÃE: A culpa é minha. Passo a semana a trabalhar, deito-me e acordo à espera de me deitar e acordar. Nunca lhes dei a atenção que devia. Conversamos tão pouco, mal nos ouvimos. Sou sempre a última a ir buscá-los à escola. Quando não me esqueço... Sou uma péssima mãe. Sou uma mulher horrível. Não sei cozinhar. Uma mulher não é nada disto. Não sou uma mulher. Não sou feminina. Não sou nada. Não sirvo para nada. Não me tocam. Não sabem o meu nome. Já se esqueceram de mim!
PAI: Então, filha. O que é que tu tens?
MÃE: Entusiasmei-me, desculpa.
PAI: Respira fundo. Já olhaste à tua volta? Olha como é bonito, o campo. Como é tranquilo, sossegado e calmo…
MÃE: Aquilo ali é um pássaro?
PAI: É uma cegonha a passar lentamente.
MÃE: E aquilo?
PAI: São vacas a levar o seu tempo.
MÃE: E ali?
PAI: Cabras a pastar em paz.»

Uma Coisa, de José Maria Vieira Mendes
(Peças)

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