O último Natal de guerra, de Primo Levi

Nariz contra nariz

JORNALISTA: Espere um momento, por favor! Estou há dois dias inteiros, quarenta e oito horas, à espera de o ver sair, e vai já voltar para debaixo da terra. O meu director não quer saber de justificações: se voltar sem entrevista, perco o emprego. E quer a entrevista já, antes do final da estação dos amores.
TOUPEIRA: Vamos lá, então, mas despache-se. Não é que eu tenha pressa: é que não gosto de luz. Para a próxima, se me avisar antes, marcamos à noite, de noite é tudo mais fácil e mais tranquilo. Não ouve este zumbido? Tractores, motas, até aviões: é insuportável. Antigamente não era assim, ouço dizer: havia paz nos campos. Mas para já, ajude-me, se faz favor, sabe que eu vejo mal: o senhor é um macho ou uma fêmea?
JORNALISTA: Macho. Mas não sei porque é que isso interessa.
TOUPEIRA: Claro que interessa. Não podemos confiar nas fêmeas. Interessam-me só duas semanas por ano; depois acabou-se, estou melhor sozinho. As fêmeas — incluindo as vossas — só querem saber do nosso pêlo. Não deixam de ter razão: o senhor sabia que o nosso é o único pêlo que pode ser acariciado em sentido contrário? Se não fosse assim, não poderíamos andar em marcha atrás nos nossos túneis.
JORNALISTA: Mas diga -me uma coisa: a sua é uma escolha radical. Nada de céu, nada de sol ou lua, apenas a escuridão e o silêncio eternos. Não é monótono? Não se aborrece?
TOUPEIRA: Vocês são todos iguais, e julgam tudo pela vossa medida humana. É uma escolha, sim, mas ponderada. Ao contrário da visão, privilegiei o ouvido, o cheiro e o tacto. Não pense que não tenho orelhas, só porque não as vê a partir de fora. Tenho um ouvido dez vezes mais apurado do que o vosso — numa escala logarítmica, claro. Ouço crescer uma raiz, ouço o rastejar de uma minhoca. E para me proteger dos vossos fracassos insuportáveis, basta-me descer uns 50 ou 60 centímetros: a essa profundidade, nem o gelo me afecta. Qual monotonia!

O último Natal de guerra, de Primo Levi
(trad. Clara Rowland)

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