Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de assis


BILHETE
«“Não houve nada, mas ele suspeita alguma cousa; está muito sério e não fala; agora saiu. Sorriu uma vez somente, para nhonhô, depois de o fitar muito tempo, carrancudo. Não me tratou mal nem bem. Não sei o que vai acontecer; Deus queira que isto passe. Muita cautela, por ora, muita cautela.”»
QUE SE NÃO ENTENDE
«Eis aí o drama, eis aí a ponta da orelha trágica de Shakespeare. Esse retalhinho de papel, garatujado em partes, machucado das mãos, era um documento de análise, que eu não farei neste capítulo, nem no outro, nem talvez em todo o resto do livro. Poderia eu tirar ao leitor o gosto de notar por si mesmo a frieza, a perspicácia e o ânimo dessas poucas linhas traçadas à pressa; e por trás delas a tempestade de outro cérebro, a raiva dissimulada, o desespero que se constrange e medita, porque
tem de resolver-se na lama, ou no sangue, ou nas lágrimas?
Quanto a mim, se vos disser que li o bilhete três ou quatro vezes, naquele dia, acreditai-o, que é verdade; se vos disser mais que o reli no dia seguinte, antes e depois do almoço, podeis crê-lo, é a realidade pura. Mas se vos disser a comoção que tive, duvidai um pouco da asserção, e não a aceiteis sem provas. Nem então, nem ainda agora cheguei a discernir o que experimentei. Era medo, e não era medo; era dó e não era dó; era vaidade e não era vaidade; enfim, era amor sem amor, isto é, sem delírio; e tudo isso dava uma combinação assaz complexa e vaga, uma cousa que não podereis entender, como eu não entendi. Suponhamos que não disse nada.»

"Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis
(Colecção Curso Breve de Literatura Brasileira)
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«(...) com Brás Cubas, Machado prolonga a lição de Sterne num aspecto preciso em que o prolongamento impede a repetição: o da materialidade do livro. De facto, tão importante como o predomínio da digressão e da interrupção na escrita do livro, é o princípio de organização material que a permite, a estimula e até a produz onde nem sempre era claro que já existisse: o capítulo curto. Esse capítulo curto é uma das maiores invenções machadianas, a ponto de ter persistido na composição dos seus romances posteriores, já sem ligação a Brás Cubas.Mas foi este quem o teorizou, e aqui mesmo, num capítulo obviamente curto:
"Mas não; não alonguemos este capítulo. Às vezes, esqueço-me a escrever, e a pena vai comendo papel, com grave prejuízo meu, que sou autor. Capítulos compridos quadram melhor a leitores pesadões; e nós não somos um público in-folio, mas in-12, pouco texto, larga margem, tipo elegante, corte dourado e vinhetas… principalmente vinhetas… Não, não alonguemos o capítulo".»


"O romanesco extravagante", posfácio de Abel Barros Baptista

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