A Força Humana, de Rubem Fonseca

A FORÇA HUMANA
«Eu queria seguir em frente mas não podia. Ficava parado no meio daquele monte de crioulos—uns balançando o pé, ou a cabeça, outros mexendo os braços; mas alguns, como eu, duros como um pau, fingindo que não estavam ali, disfarçando que olhavam um disco na vitrina, envergonhados. É engraçado, um sujeito como eu sentir vergonha de ficar ouvindo música na porta da loja de discos. Se tocam alto é pras pessoas ouvirem; e se não gostassem da gente ficar ali ouvindo era só desligar e pronto: todo mundo desguiava logo. Além disso, só tocam música legal, daquelas que você 'tem' que ficar ouvindo e que faz mulher boa andar diferente, como cavalo do Exército na frente da banda.

A questão é que passei a ir lá todos os dias. Às vezes eu estava na janela da academia do João, no intervalo de um exercício, e lá de cima via o montinho na porta da loja e não agüentava—me vestia correndo, enquanto o João perguntava, “aonde é que você vai, rapaz? você ainda não terminou o agachamento”, e ia direto para lá. O João ficava maluco com esse troço, pois tinha cismado que ia me preparar para o concurso do melhor físico do ano e queria que eu malhasse quatro horas por dia e eu parava no meio e ia para a calçada ouvir música. “Você está maluco”, dizia, “assim não é possível, eu acabo me enchendo com você, está pensando que eu sou palhaço?”
Ele tinha razão, fui pensando nesse dia, reparte comigo a comida que recebe de casa, me dá vitaminas que a mulher que é enfermeira arranja, aumentou meu ordenado de auxiliar de instrutor de alunos só para que eu não vendesse mais sangue e pudesse me dedicar aos exercícios, puxa!, quanta coisa, e eu não reconhecia e ainda mentia para ele; podia dizer para ele não me dar mais dinheiro, dizer a verdade, que a Leninha dava para mim tudo que eu queria, que eu podia até comer em restaurante, se quisesse, era só dizer para ela: quero mais.»

Rubem Fonseca in "Lembrancas do presente - o conto contemporâneo", colecção Curso Breve de Literatura Brasileira
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«Rubem Fonseca constrói, com paradoxal elegância, com corte rigoroso da frase, uma imagem de mundo irremediavelmente ordinária e perversa. O relato alheado e frio deixa transparecer um tremendo esforço de contenção do pesar, da dor da inadaptação à vida. Tanto maior a frieza da narrativa, tanto mais evidencia a catástrofe, o desastre, a degradação. (...) 
Pode-se dizer também que Rubem Fonseca tornou-se mestre em obter o efeito de um qualquer lirismo que, entretanto, só existe quando gerado em concomitância com o sórdido.»

Alcir Pécora, no texto de apresentação da antologia

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