À Espera de Godot, de Samuel Beckett

«VLADIMIR: O que é que eu estava a dizer? Podíamos começar por aí.
ESTRAGON: O que estavas a dizer quando?
VLADIMIR: Mesmo ao princípio.
ESTRAGON: Ao princípio do QUÊ?
VLADIMIR: Do fim da tarde… eu estava a dizer… eu estava a dizer…
ESTRAGON: Não sou historiador.
VLADIMIR: Espera… nós abraçámo-nos… estávamos contentes… contentes… o que é que fazemos agora que estamos contentes… continuamos à espera… à espera… deixa me pensar… está quase… continuamos à espera… agora que estamos contentes… deixa cá ver… ah! A árvore!
ESTRAGON: A árvore?
VLADIMIR: Não te lembras?
ESTRAGON: Estou cansado.
VLADIMIR: Repara nela.
(Olham para a árvore.)
ESTRAGON: Não vejo nada.
VLADIMIR: Então, ontem estava toda preta e despida. E agora está coberta de folhas.
ESTRAGON: Folhas?
VLADIMIR: Numa só noite.
ESTRAGON: Deve ser a primavera.
VLADIMIR: Mas numa só noite!
ESTRAGON: Estou a dizer-te que ontem não estivemos aqui. Foi mais um dos teus pesadelos.
VLADIMIR: Então, onde é que tu achas que estivemos ontem?

ESTRAGON: Como é que queres que eu saiba? Num outro compartimento. O que não falta é vazio.
VLADIMIR: (seguro de si) Muito bem. Não estivemos aqui ontem à tarde. Então o que é que fizemos ontem à tarde?
ESTRAGON: Fizemos?
VLADIMIR: Tenta lembrar-te.
ESTRAGON: Fizemos?… Devemos ter tagarelado.
VLADIMIR: (controlando-se) Sobre o quê?
ESTRAGON: Oh… sobre isto e sobre aquilo, acho eu, nada em especial. (Seguro.) Pois, agora já me lembro, passámos a tarde de ontem a tagarelar sobre nada em especial. Isto já dura há
meio século.»


A edição Cotovia "À Espera de Godot", de Samuel Beckett, é uma tradução de José Maria Vieira Mendes. A peça estreou em Portugal em 1959, numa encenação de Francisco Ribeiro (Ribeirinho), no Teatro da Trindade.

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