Prado do repouso


Ainda gosto do que vejo medita dona esmeraldina à janela do rés-do-chão da rua da torrinha, regando as sardinheiras com vagar e cumprimentando em silêncio a vizinhança. Embora o meu marido me tenha morrido há cinco anos, não, seis, não posso dizer que seja infeliz. Fui feliz com ele, continuo feliz sem ele. A minha mãe costumava dizer que logo nasci logo me ri. De modo que foi assim vida fora, vida dentro, apesar dos muitos dissabores. E de um desgosto tamanho que ainda hoje me surpreendo por ter sobrevivido. As minhas vizinhas são quase todas viúvas como eu. Há uma que até diz que nós é que temos sorte, que o marido dela não há maneira de bater a bota. E eu rio-me, pois claro. Quando ele abre a boca, pouco, é só para resmungar que a vida está isto e aquilo e é uma vergonha, é uma vergonha, no tempo do salazar havia ordem e respeito, tento nas línguas, tento nas línguas, ah pois havia, se havia, agora é tudo aos tiros pelas ruas, eu por mim nunca assisti a nada, alguns desacatos resolvidos a murro e bofetada e pouco mais, no outro dia um cão foi atropelado aqui na rua, deu três pulos a ganir e caiu redondo no asfalto, que pena que senti do bicho, ainda ouço os seus ganidos, talvez sejam mulheres a gemer, ou homens, que eles também sabem gemer, o meu marido gemia que era uma maravilha, os moços são todos uns mal-educados, prossegue ele voltado para trás olhando para dentro, e deve haver muito pouco para ver, e os pais são piores do que eles, bem, mas assim não sobra muita gente, pois não? Mais valia ele ficar calado, é o que ela diz, lavo-lhe e passajo-lhe as camisas, quando faz sol estendo-as no quintal nas traseiras, elas secam ao vento, devia era pendurá-lo também com duas molas a ver se arejava as ideias, duas, não, que ele é grande de largura e ainda me estragava as molas, já basta o mais, mas o quê, o homem quando mete uma coisa na cabeça nem vale a pena discutir, de resto ele tem sempre razão, grande sabichão, quando enviuvar hei-de arranjar um que seja mudo, prefiro falar sozinha, sempre me vou entretendo que nunca na vida me faltou assunto. Ou então arranjo um papagaio e ensino-lhe a dizer bom dia adozinda que linda que és, bom dia adozinda que linda que és, bom dia adozinda que linda que és, e sou, pois sou, quem é bonito é sempre bonito, é ou não é verdade, e eu namorei com muitos antes de casar, ainda hoje me pergunto como é que ele fez para me convencer. Envelheceu mal, foi isso, nem todas as pessoas são como o vinho do porto, os homens, então, são mais como jeropiga, sendo boas as castanhas sempre dá para acompanhar. É o que ela diz e a gente ouve e ri-se, pois claro.
Sim, ainda gosto do que vejo. Os mocinhos e as mocinhas de mão dada a passarinhar, os seus arranjinhos, os seus arrufos por tudo e nada, no outro dia um deles ia a beliscar as mamas da namorada e ela ralhava-lhe zangada, mas bem que gostava, oh sim, e depois os beijos, que bonitos, no outro dia eram dois homens, via-se bem que gostavam um do outro, o que não diria o marido da minha vizinha, dois rabos é o que eles são, um a levar e outro a dar, ao que isto chegou, até já não se dão ao trabalho de disfarçar, mas os beijos, os beijos, juro que chego a senti-los nas faces ou nos lábios, ou até, sim, até, assim como um golpe de vento ou uma leve aragem, e ainda me dá um estremecimento do corpo todo, uma sacudidela, que o meu marido tinha cá umas mãos, parecia aquele mágico, como é que ele se chama?, não descansava enquanto não me deixasse sossegada, saciada, e a sua língua era aventureira, ora arrojada ora delicada, de modo que fiquei com o corpo assim vivido, vivaço, as coisas fazem ricochete e doem e dão prazer, tudo me lembra coisas do passado, de rosto virado para a rua, tudo me lembra coisas do futuro que hei-de ver acontecer mesmo diante dos meus olhos ou eu não me chame. Esmeraldina.
Criámos um filho, o chiquinho, morreu com oito aninhos, um caixãozinho de pinho e as pazadas de terra aos soluços, ajeitei na cova o seu peluche preferido, um urso chamado pimpão cego dum olho e com uma orelha a menos, remendei-o primeiro, nenhum trabalho me custou tanto, foi para o meu menino não ficar sozinho, soterrado, morto de susto, e eu sem poder valer-lhe, ó mãe vem depressa meter medo ao susto, o que eu chorei, e o meu marido também, o que eu chorei, ó mãe e eu sem poder valer-lhe, cheguei a desistir de viver, fazia tudo igual, a costura para fora, nem sentia as picadas da agulha, os dedos enregelados pela dor, as compras, a cozinha, mas sem gosto, primeiro, sem desgosto, depois, e o meu marido também, até que um dia, quando fui visitá-lo ao prado do repouso, ia todas as semanas, amanhã é dia de lá ir, era primavera, hoje é outono, ou talvez fosse já verão, estavam as rosas em botão e eu olhei-as nos olhos e era o chiquinho a dizer mamã lembras-te quando me contavas as histórias dos avós quando tu eras pequena como eu, lembras-te como nos ríamos, e tu imitavas a voz do teu tio américo quando estava muito bebido e arrastava as palavras e não dizia coisa com coisa e tropeçava a caminho de casa, chamava nomes às estrelas, suas putas, suas putas, chiquinho não digas palavrões que é feio, suas putas, agarrado aos semáforos para não cair e a fazer manguitos aos carros que passavam, mamã, toda a vida que me faltou, tanta a vida que lhe faltou, foi o que eu pensei, sobrou tanta vida para viver, há para mim, há para os outros, não se pode desperdiçar, foi tudo isto que o chiquinho me disse e como poderia eu não acreditar, mesmo não querendo, e recomecei a querer outra vez, até o meu marido, durante dois anos mal nos tocámos, acho que ele ia às meninas ali para os lados da trindade, e eu, se não fosse a educação que me deram, mas não, não era capaz, então recomeçámos a fazer amor e por vezes chorávamos depois lembrando o chiquinho bebé a dormir entre nós os dois, como ele fora um rebento do nosso bem-querer, do nosso ardor, dos carinhos que ainda lhe devíamos e havíamos de dar-lhe até ao fim. E foi assim. Amando-nos continuávamos amando o chiquinho, pelo menos é isso que sinto, e nunca falei disso com o meu marido, mas acho que sentia o mesmo que eu. O padre armando disse-me mais ou menos isto, por outras palavras, pelo menos foi o que eu entendi, mas não era preciso, entretanto eu já sabia. Claro que ele falou em dever conjugal, e eu ouvi prazer e sei que ouvi bem que não tenho nem os ouvidos nem o corpo empenados, ah não. De resto, não costumo ir à missa, vou visitar o chiquinho, mudar-lhe as flores e limpar-lhe a campa. O urso pimpão às vezes deitado na pedra de olhos abertos a hibernar. As rosas, essas, é só esperar, de um ano para outro, lá no prado do repouso, e o buxo e outros arbustos, amores-perfeitos, dálias, violetas, o jardim onde o meu chiquinho agora anda de bicicleta com o pimpão abraçado ao peito, olha, mamã, olha, mamã, e eu, eu olho e olho e olho. Acho que é o mesmo, ou até melhor, pelo menos é aquilo de que sou capaz, deus há-de perceber, se é pai e mãe. Se é o amor de alguém.
De modo que sim, ainda gosto do que vejo. Com estes velhos olhos. Setenta e cinco anos já cá cantam, estou viva e recomendo-me, por vezes é um ruído ensurdecedor e então fecho os olhos para ouvir melhor. Se conhecesse um velhinho assim como eu, bondoso e charmoso, ainda era menina para lhe abrir a janela e lhe deitar a mão com o corpo todo, oh sim se era. Quando eu morrer, não fiqueis tristes. Pois ainda hei-de me rir e pôr o esqueleto a chocalhar, no céu ou em qualquer outro lugar, onde for que seja. Há quem tenha o que merece, há quem o que calha, a mim calhou-me a sorte de um coração alegre e tudo fiz para merecê-lo. E depois há o chiquinho, estou ansiosa por saber com o que é que ele se parece, oxalá nos reconheçamos. E o meu marido com aquelas suas mãos jeitosas, que o tempo não passa para certas coisas, pois não. E os vizinhos que já lá estão. Nós todos na conversa, puxando palavras umas atrás das outras, mortinhos de riso cuspindo os caroços, os comboios em campanhã chegando e partindo, o douro a baloiçar entre os penedos espumando gargalhadas esverdeadas rumo ao mar. Hoje convidei a adozinda para almoçar, disse-lhe traz também o teu marido, que não, que nem pensar, trago é uma garrafa de bom tinto lá da terra. Credo, cheira a queimado que tresanda, ah, meu deus, já me esquecia do arroz de pato, deve estar todo esturricado.
Dona esmeraldina precipita-se para dentro de casa apoiando-se na muleta, deixa a janela entreaberta porque nunca se sabe, sim, nunca se sabe, descontando tudo o que nunca saberei, as sardinheiras ao vento irrequietam-se, um violino soa pela clarabóia do conservatório. Na maternidade uma criança nasce e outra morre enquanto no palácio de cristal um pavão descobre o leque de círculos verdes pintalgado. Francisco, arrebatado, sustém a respiração e saliva o próprio coração que de tão crescido lhe desliza das mãos para o chão aparentemente desamparado.

Bénédicte Houart       

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