Não tem fim

Vejo a notícia da revolução egípcia num jornal estrangeiro. Fotografias de homens com os sapatos na mão, homens arremessando fogo, homens em cima das árvores. Mulheres que choram ou cantam. Reparo que as imagens que mais me demoram têm o mesmo nome por baixo. Escrevo o nome no computador e descubro que o homem que tirou aquelas fotografias perdeu uma perna no Afeganistão. Tem agora um gancho no lugar da perna. Tento imaginar isto. Um homem com uma perna de gancho tirando fotografias no calor revolucionário do Cairo. Pedras que voam, caras presas em rectângulos de luz. O que lhe terá acontecido naquela hora afegã? E nos dias, meses, que lhe seguiram? Quero saber tudo. Quero tudo mas como se fosse eu. Sendo eu esse homem, essa mulher que canta ou chora, esta revolução. Como dizem as badanas dos livros de aeroporto, que agora ocupam as livrarias: uma história com todos os ingredientes. Arte, corpo e política. Na fotografia, as três mulheres são o coro. “Carpindo”, não é essa a palavra? Pondo pontos de interrogação na história à medida que a história avança. O narrador é estrangeiro, claro. O narrador sempre estrangeiro e amputado, só assim poderá dar geometria e lucidez à confusão, à vertigem, à poeira. O texto é silencioso. Na praça pública a multidão dos sem-voz falando por gestos, por todos. Política, corpo e o quê. Começar por que frase? Avançar desde o fim? Escrever “Vejo a notícia da revolução etc” e ver onde vai dar isso? Ou esperar mais um momento, talvez? Pois é, a Eduarda Dionísio é que tem razão. As histórias não têm fim.


Jacinto Lucas Pires

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