Luís Quintais: Uma metafísica secular (3)



Para Stevens, a realidade ausenta-se para dar lugar à imaginação, mas realidade e imaginação, num contraponto cego (cujo desígnio último se afigura intratável), oscilam implicando-se uma na outra. Ou seja, as ordens da realidade e as ordens da imaginação assentam num tempo cíclico, num eterno retorno. Estamos perante uma cosmologia in the making que faz apelo a um fluxo em que caos e ordem se qualificam e metamorfoseiam sem cessar, e sem cessar porque a experiência humana se funda na mais pura contingência, na sua abertura ao que lhe escapa. O poeta é aquele que parece convocar habilmente esta abertura e a consciência desta abertura para o território da linguagem, ou seja, para o território do sentido. Sem realidade não há imaginação, sem imaginação a realidade é somente “vácuo”, como escreve ele nos seus “Adagia”. De outro modo, a poesia é sentido. De outro modo ainda, a questão mortal é o sentido e não a sujeição cega a um dos termos da equação “realidade-imaginação”.
 Stevens é assim o mais estranho dos poetas modernos. Ele faz da prática poética um exercício especular ou reflexivo (que reorienta intencionalmente a experiência de fragmentação moderna, dotando-a de um holismo que lhe é alheio), mas, em simultâneo, ele faz outra coisa: destrói qualquer ilusão de rigoroso controlo dos modos de fazer mundos. Stevens sabe, por exemplo, que as utensilagens que usa na sua entrega e tributo à imaginação não lhe pertencem inteiramente, reconhecendo não apenas que as coisas são mudadas quando as tocamos (quando a imaginação delas se aproxima), mas também que nem sequer temos o domínio dessa força eventualmente perigosa e disruptiva que se desencadeia no momento em que o poema se cria. Estamos perante um tema romântico que Stevens receberá de Blake.
O homem não controla os meios de expressão. A oficina absoluta do poeta moderno (e.g., Valéry, Ponge, Melo Neto, Oliveira) não será por certo uma das premissas da sua inteligência criativa. Se quisermos, Stevens é um poeta que exige que reconsideremos em muito a imagem que temos do trabalho oficinal do poeta moderno.
Bem mais próximo de Wittgenstein e das suas Investigações Filosóficas, Stevens ensina-nos que a linguagem não é espelho do mundo, que a linguagem exerce os seus privilégios próprios - ela age sobre o mundo, ela re-inventa-o sob a égide dos seus usos, em suma, das práticas que lhe damos (e tais práticas instalam-se num espaço onde o fazer não depende integralmente da consciência). Os meios de expressão excedem o poeta, que os molda como pode e não como quer. Os meios de expressão criam-se e recriam-se em acto na imperfeição em que tudo se perfila, uma imperfeição que se prende, tão-só, com a extrema fluidez e imprevisibilidade da experiência humana.
Wallace Stevens, mestre da meditação lírica, é, a seu modo, um poeta que faz da poesia uma arte prática. Dessa prática, tudo o que temos hoje é este vestígio cuja compreensão está fora de toda e qualquer vontade monumentalizadora ou entronizadora. Vestígio de uma metafísica secular em que a loquacidade da poesia, embora incomensurável com o poema, encontra, porém, o seu prodigioso eco nele. Um eco que, se quisermos, podemos e poderemos escutar vezes sem conta, sempre.

Luís Quintais

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