"Entre árabes e judeus" de Helena Salem

                                                                                                                                                                          © Simon Lourié

O que significa ser uma menina judia, de nome árabe a viver num país católico a frequentar escola protestante? O que significa ser uma jornalista brasileira, de origem judaica a cobrir uma guerra árabe-israelense, nos países árabes e com posições solidárias aos palestinianos? Em Outubro de 1973, a Guerra do Ion Kipur detonou uma situação limite na vida da jornalista Helena Salem. Escalada para cobrir o conflito, com o tempo amadureceu as suas reflexões: que guerra era essa, entre árabes e judeus? Nesta obra autobiográfica exemplar, a autora procura, com paixão, franqueza e autenticidade, juntar “a garotinha que se sentia judia e diferente no colégio, com a adolescente que jurou nunca casar na sinagoga e a correspondente de guerra que assumiu uma suposta origem árabe para circular livremente pelos Egito, Síria e as montanhas do Líbano”.


Na solidão daqueles primeiros dias (e de tantos, tantos depois), o desafio era ter coragem de sair do hotel, entender-me por mímica com as pessoas e tentar também entender o que se passava na cidade, no país. Por exemplo. Apenas anoitecia, e via todos a começarem a comer, inclusive sentados em rodinhas, nas calçadas. O que seria aquilo? Um certo pudor de perguntar diretamente (jornalista que se preze deve disfarçar a ignorância), até descobrir. Ramadã, jejum diurno praticado uma vez por ano pelos muçulmanos, durante um mês. Como o calendário islâmico é diferente do católico (assim como o judaico), eu não sabia que Ramadã, naquele ano, caía em Outubro. Também não sabia que o fato de ser mulher pudesse implicar tantas dificuldades. Parecia que não era possível eu estar lá apenas a trabalho. Não podia. Ou que o trabalho fosse outro. Tudo bem, devia então provar duas vezes meu objetivo, sendo tão valente e decidida quanto um “homem”. Isso, igualmente na relação com os desenvolvidos jornalistas europeus. Do contrário, sem erro, seria a velha máxima: vacilou, dançou.

                                                                          ***

(Inevitável. Impossível sair correndo, impossível mudar a história. Esta guerra pode levar a um não sei quê, e eu não posso sair fora. Que jornalista o quê? E se começam a bombardear o Cairo? E se eu morrer aqui? Que coisa mais estúpida! Se ainda fosse a revolução no Brasil… Mas morrer numa guerra entre árabes e Israel… não tenho nada a ver com isso. Que estupidez, meu Deus. E ainda mais sou judia. Não, ninguém, ninguém pode saber. No meio de uma guerra não importa o que a gente pensa, não importa o que a gente é, não numa guerra como esta. Nesta guerra, em princípio sou inimiga. Não haverá jeito de explicar, muito menos de provar. Ninguém pode saber. Nem Niccola, nem Mahmoud nem Alá nem Jeová.)



Helena Salem, autora de um dos títulos da colecção Judaica, Entre árabes e judeus, é mãe da escritora Tatiana Salem Levy. Tatiana colabora mensalmente com o Blog da Cotovia e seu livro A Chave de casa foi publicado na colecção Sabiá.

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