JUDAICA - Apresentação da colecção pelo editor dos Livros Cotovia

Não me recordo quando começou o meu interesse pelo judaísmo. De muito pequeno, com certeza. Talvez venha da admiração que o meu Pai tinha pelos judeus. E de ele dizer aos filhos, sem que percebêssemos porquê, que éramos diferentes. Desde muito cedo terei ficado com essa noção de que havia uma diferença na família. Depois, na adolescência, claro, tudo isso se tornou insuportável: eu não queria ser diferente de nada nem de ninguém na vida. Mas vivíamos numa vila pequena, perto de Lisboa, que era visitada por caixeiros-viajantes. O meu Pai, “farmacêutico” local e dono de vários outros comércios, dava a estes homens, alguns deles judeus que cá tinham ficado desde a Segunda Guerra, um tratamento preferencial. Lembro-me que tinha a preocupação de lhes comprar sempre qualquer coisa, mesmo quando não precisava, e essa solidariedade não era política, era humana, era uma cumplicidade. Cresci com isso. E aos poucos fui-me apercebendo de que a minha família, oriunda de uma região interior da Beira Alta, não tinha qualquer educação católica, sequer o menor conhecimento do calendário religioso. Hoje pergunto-me se isso não será um traço de judaísmo, esconder uma coisa sem se converter a outra.
Nasci no ano em que findou a Segunda Guerra; tornei-me politicamente consciente muito jovem. Desde o começo da adolescência. Acordei logo para o debate político, tornei-me um fervoroso anti-salazarista. Lia muito. Fui tomando conhecimento das páginas negras da história de Portugal, da Inquisição em particular e, nesse aspecto, devo muito a António José Saraiva. Como devo ao Padre António Vieira, que defendeu, em tempos incrivelmente difíceis, judeus, índios, escravos... É uma figura impar da nossa cultura. Mas não sou um vieirista do Quinto Império, isso não sou. Então, interessei-me pelas monstruosidades de que somos capazes. O Diário de Anne Frank foi marcante para mim, como para tanta gente. Debrucei-me sobre os horrores cometidos pelo nazismo e por regimes de uma Europa minha contemporânea que acreditávamos civilizada.
Aos 16 anos visitei sozinho a Alemanha Federal, que era para mim o exemplo da democracia na Europa do pós-Guerra. Não esqueço, nem posso esquecer, uma ou outra manifestação de xenofobia de que eu próprio fui alvo, por causa do meu aspecto físico, facilmente identificado como tipicamente judeu. Anos mais tarde, no museu judaico de Paris, vi-me a mim mesmo ao espelho em inúmeras fotografias de judeus. Mas naquela Alemanha do início dos anos 60, passaram por mim uns rapazes, operários alemães ou coisa que o valha, olharam-me com desprezo e cuspiram no chão. Terão concluído que era judeu. Sentir isso na pele, o ódio sem razão, faz toda a diferença.
Na mesma época tinha grande curiosidade pelo Estado de Israel, o socialismo dos Kibutz, a ideia mirífica de fazer do deserto uma horta e um jardim! Mas, logo a seguir, os conflitos entre árabes e judeus na região, e a minha juvenil aproximação à esquerda marxista portuguesa, deixaram-me confuso. Tradicionalmente, a esquerda defende os árabes de uma maneira tão radical e irracional quanto a direita e os EUA defendem o Estado de Israel e as suas políticas expansionistas. Hoje, não tenho nenhuma posição clara sobre a questão israelo-palestiniana. E sou ateu convicto. É verdade que tenho um candelabro judaico em casa, mas isso é um símbolo; uma homenagem aos antepassados, uma quase presença deles. Sou ateu, não tenho a menor dúvida a esse respeito. Até na doença sou ateu.
Sinto que é necessário recordar sempre os grandes crimes contra a humanidade. Todos. Esta colecção vem daí, dessa minha necessidade tornada convicção. Esta colecção, “Judaica” de seu nome, reúne textos muito, muito diferentes: de judeus religiosos, de judeus ateus, de judeus muito críticos da sua gente, e até de não-judeus. Com o fascínio muito particular que tenho pelo Brasil e pelas suas gentes, incluí vários autores brasileiros de origem judaica que, em língua portuguesa, nos explicam o judaísmo em sentido lato e não centrado na perseguição aos judeus. Há que ter uma noção mais ampla das coisas, ir atrás na história.
Escolhi os primeiros títulos num tempo record porque tenho realmente na cabeça uma biblioteca sobre judaísmo, livros que fui lendo desde muito cedo. Livros sobre a história do povo judeu, sobre a religião judaica, sobre o holocausto, sobre as reacções pós-holocausto, muitas delas condenadas pela ortodoxia. Por exemplo, Samuel Rawett, brasileiro, grande escritor e provocador, dificilmente é ouvido no meio por ser contra a vitimização dos judeus pós-holocausto; e, no entanto, escreve uma oração magnífica pelos mortos do atentado de Munique (quando um sector radical da OLP fez explodir um avião com atletas israelitas no aeroporto de Munique nos anos 70).
Reunimos nesta colecção títulos de grande diversidade, de Primo Levi a Karl Marx! Permitem-nos discutir, e a discussão reflectida faz-nos muita falta. É ela que abre horizontes. Ouvir os vários lados, tomar partido ou não, mas tentar compreender. É esse o caminho para a tolerância.
Correndo o risco de mencionar uns omitindo outros, risco injusto uma vez que os escolhi a todos e todos me parecem fazer sentido, há três títulos na “Judaica” que são, para mim, particularmente interessantes: o de Samuel Schwarz, que deu a conhecer ao mundo os cristãos-novos em Portugal no séc. XX (intitula-se, justamente, «Os cristãos-novos em Portugal no século XX»). Polaco, optou pela nacionalidade portuguesa e dedicou-se ao estudo dos marranos, em particular na região de Belmonte. É um livro fundamental para nos compreendermos a nós mesmos. Outro é o precioso livrinho de Moses Bensabat Amzalac, que, em 1930, teve uma edição de 300 exemplares; é um livro de orações de Israel escritas em português, para serem lidas em português. E chamo também a atenção para o livro de Helena Salem. A Helena era uma jovem jornalista brasileira quando o escreveu. Estava no Egipto aquando do início da guerra do Ion Kipur e acabou por cobrir, como repórter, essa guerra, de um lado e do outro, apesar da sua condição de judia, nascida judia. Porém, aquele seu apelido – Salem – permitiu-lhe circular de ambos os lados, sendo um apelido comum entre árabes e judeus.
Não creio que haja anti-semitismo em Portugal. Ou fanatismo anti-semita. Ou, melhor, há, quando se fala contra os árabes. E há resquícios de anti-semitismo na língua (fazer judiarias, ser “somítico”, essas coisas). Mas há nitidamente necessidade de discussão, de reflexão séria sobre as coisas. Espero que esta colecção contribua para isso.


André Fernandes Jorge

Comments

  1. Olá... sou brasileira, moro em São Paulo e me interessei muitissimo pela coleção, gostaria de saber se haverá publicações aqui em SP? milkduda@hotmail.com

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  2. És meu ídolo! Amigo e editor exemplar!
    Abraços,
    Carlito

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  3. Parábens, André, que texto lindo! Parecia que estava ouvindo sua voz enquanto atravessávamos ruelas a procura de um delicioso restaurante
    de Goa...
    Posso imaginar como está a coleção...!
    Um beijo e saudades,
    Valeska

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  4. Li, e vou recomendar leitura e discussão atentas. Imenso abraço do Luís Quintais

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  5. Caro André Fernandes Jorge,

    três linhas 1) a saudar a vossa iniciativa e a pedir mais!!!! São tão poucos os livros disponiveis em Portugal nesta area; 2) a inquirir da sua disponibilidade para receber sugestões; e 3) a dar noticia de cursos livres no Museu do Oriente:
    A INVENÇÃO DO ORIENTE NA ARTE OCIDENTAL
    http://www.museudooriente.pt/1148/curso-a-invencao-do-oriente-na-arte-ocidental--.htm,
    O QUE É A “BÍBLIA”? http://www.museudooriente.pt/1149/o-que-e-a-biblia.htm

    felicitações
    Manuela Franco
    manuela.franco@ipri.pt

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