Renascimento


Crianças são muito sérias, e se preocupam com as coisas. Passam horas pensando em Leonardo da Vinci ou em Mozart ou em Einstein. Elas estão começando a entrar na espécie humana e querem saber o que têm de perspectiva possível. São eles o seu horizonte: Leonardo da Vinci, Mozart, Einstein. Então é importante pensar neles.
Crianças mantêm as tradições mais do que os adultos. Elas fazem gestos antigos sobreviverem; cruzam os dedos atrás das costas quando vão mentir como vêm cruzando as crianças deste mundo há séculos. Dão-se os mindinhos para refazerem amizades; passam o anel imaginário de mão em mão com cuidado; desenham uma cruz com o indicador sobre o peito quando pressentem a gravidade do que está para acontecer; se ajoelham para rezar, porque sabem que fazer isso é se inserir numa tradição de séculos. Faz com que se sintam humanas, bonitas. Quando eu era criança, assistia aos Flinstones porque me dava vertigem pensar que meus pais tinham assistido àquele mesmo desenho quando eles tinham sido crianças, em algum dia séculos atrás. Leonardo da Vinci, Mozart e Einstein eram mais próximos da minha realidade do que a infância dos meus pais. Num livrinho sobre a infância dos gênios desta terra, li que o pai de Mozart comia um ovo cru todos os dias de manhã. Quebrava a casca com uma colherzinha e o engolia de uma só vez. E minha mãe então me disse que ela às vezes era obrigada a fazer o mesmo quando era criança e que, mais do que isso: ela gostava. Foi um buraco que se abriu quando ouvi isso. Minha mãe também me dizia que, quando ela era criança, sua família só tinha dinheiro para comprar uma maçã por semana para cada um dos filhos, e eu chorava pensando nisso, porque levava as coisas muito a sério, e entendia que essa era a única comida que eles tinham para a semana inteira.
Minha mãe me ensinou a arrumar a cama e me disse que o mais bonito era deixar o lençol bem esticado, sem rugas. Então era uma delícia exagerar esse desafio e dizer que era impossível deixar o lençol sem rugas. Eu me abaixava para ficar com os olhos na altura da cama e via os menores volumes, inevitáveis por causa da natureza do tecido e da natureza das coisas, e sentia, pela primeira vez, a fome pelo ideal, a fome de infinito. Pensava nos adultos que sabiam arrumar camas perfeitamente, e em como eles deveriam ser boas pessoas.
Pensava em Leonardo da Vinci.
Achava que ele deveria ser o maior artista do mundo, porque conseguia desenhar sem borrar. Eu olhava de perto as reproduções da Mona Lisa para ver se conseguia encontrar algum pontinho de cor escapando para fora do contorno. Nunca encontrava. Minha irmã, que é quatro anos mais velha, também chegava perto de ser a maior artista do mundo.


Imagem de Deborah Salles



Sofia Nestrovski nasceu em São Paulo, em 1991. Cresceu no meio do milharal dos Estados Unidos, voltou para São Paulo mais tarde. Faz mestrado sobre o poeta William Wordsworth na Universidade de São Paulo, dá cursos sobre Shakespeare, assina uma seção semanal sobre palavras no jornal Nexo, escreve resenhas para a revista Quatro cinco um. Também luta Kung Fu, mas não muito.




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